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Tradução de Página

Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Começar vítima e acabar criminoso

Fonte: Google Imagens

A imaginação não tem limites, mas quando se trata de inventar crimes percorre caminhos mais estreitos. As vítimas, que nunca o foram, mentem por várias razões, desde relações extraconjugais a tentativas de receber dinheiro das seguradoras ou, no caso dos mais novos, simplesmente para evitar que os pais se zanguem. Mas muitas vezes dizem coisas parecidas na hora de descrever os criminosos: são quase sempre altos e entroncados, têm armas e raramente atuam de cara descoberta. E, claro, nunca existiram. Em média, todas as semanas chega à Polícia Judiciária uma denúncia de um crime que, ao fim de algum tempo e de muito trabalho, passa a existir precisamente por nunca ter existido.

De acordo com dados da PJ, nos primeiros seis meses deste ano [1], foram abertos 24 inquéritos por simulação de crime, a maioria dos quais na Diretoria do Norte — o que representa um aumento relativo aos valores registados em igual período nos dois anos anteriores (20 em 2013 e outros tantos em 2012). Foi também na Diretoria do Norte que, há cerca de um mês [2], foram desmontados três crimes falsos no espaço de duas semanas: um sequestro, um caso de ofensas à integridade física, ambos envolvendo armas de fogo, e um outro de roubo. “Muitas vezes, as pessoas pura e simplesmente não têm noção do trabalho que dão à polícia nem de que, ao mentir, estão a cometer um crime”, admite um responsável da Judiciária.

As Inglesas

A cena foi digna de um filme. Em setembro do ano passado [3], duas turistas inglesas decidiram enganar as amigas com quem estavam em Lisboa e contrataram uma empresa para simular o próprio sequestro. O falso crime ocorreu nos Restauradores e dezenas de pessoas telefonaram para a polícia, que conseguiu intercetar a carrinha na Avenida da Liberdade. Vítimas e raptores foram detidos. [Ver notícia]

Sinais de Alerta

Os investigadores da PJ nunca partem do princípio que determinada situação é inventada. Ainda assim, há histórias que parecem “mal contadas” desde o início. “Há certos pormenores que as pessoas não conseguem preparar e que são facilmente desmontáveis", admite um elemento da PJ. Comum a muitas das histórias falsas é o perfil do criminoso: alto, de cara tapada e com “armas grandes”. “Nunca ouviremos ninguém queixar-se de que foi assaltado por um tipo franzino e desarmado.


A história do roubo, que terminou esta semana [4] com a constituição como arguidos de dois homens e uma mulher, por simulação do crime de roubo, começou em agosto. [Ver notícia]

Na altura, os três contaram que tinham sido assaltados na zona de Rio Tinto, às 2h40 da manhã, por dois homens encapuzados e armados, que lhes tinham roubado um telemóvel no valor de 250 euros. Um mês depois, numa altura em que não havia muitas pistas, a PJ detetou que o telefone estava a ser usado e nem foi muito difícil aos inspetores chegarem ao novo “dono” — um indivíduo com antecedentes criminais por roubo (a investigação parecia mais fácil), mas que garantia ter encontrado o telefone num centro comercial pouco depois da meia-noite (tudo se complicou, outra vez).

Os inspetores voltaram ao início, à primeira história, ao relato das vítimas que tinham ido ao cinema ver “O Planeta dos Macacos” e, mais tarde, sido assaltadas. O trabalho que se seguiu, minucioso ao ponto de contemplar a duração do filme e dos respetivos intervalos, permitiu chegar a uma conclusão: era impossível as vítimas estarem no local onde ocorrera o assalto à hora em que ocorrera o assalto. “Um deles esqueceu-se do telefone no centro comercial, durante o jantar. Quando deu por isso, voltou lá, mas o telefone já lá não estava. Para ativar o seguro e para se vingar de quem tinha ficado com o telefone, inventou esta história e convenceu os amigos a alinhar”, adianta a mesma fonte policial. Os três arriscam uma pena que pode ir até um ano de prisão ou multa até 120 dias.

Traição e dívidas

A fraude com seguros é um dos motivos mais comuns para a simulação de crimes. Mas não é o único. “Há situações de vingança, pessoas com perturbações emocionais e muitos miúdos que mentem para não arranjar problemas com os pais”, concretiza o inspetor-chefe Manuel Santos, da Diretoria do Norte da PJ. “Por vezes fazem-no apenas porque não têm dinheiro”, admite. Há pouco tempo, um homem queixou-se de ter sido assaltado por dois encapuzados depois de levantar €350 no multibanco — dinheiro que ia emprestar a uma amiga. Na verdade, não havia assaltantes e nunca tinha havido dinheiro. Apenas dívidas: ao senhorio, na mercearia, etc.

A história é simples, mais simples ainda quando comparada com uma que sucedeu há quase três anos, em Mirandela, quando um homem de 46 anos foi encontrado na mala do seu carro, de pés e mãos atados, em hipotermia e com ferimentos vários. 

Em poucos dias, contudo, os inspetores da PJ deixaram de ter em mãos um caso de sequestro para estarem ocupados com mais uma simulação — o homem tinha encenado tudo para que a mulher não descobrisse que passara a noite com a amante. [Ver notícia]

Dois anos antes, em agosto de 2009, também num caso investigado pela PJ, uma mulher de 38 anos foi encontrada pelos bombeiros em Marco de Canaveses, completamente nua ao lado de um carro incendiado. Apresentava vários ferimentos, incluindo a falta de parte do couro cabeludo. Contou à polícia que tinha sido sequestrada, torturada e violada por um casal que a intercetara em Entre-os-Rios. [Ver notícia]

Dois meses depois, em outubro, foi detida por ter simulado o crime, autoinfligido as lesões e incendiado o carro. Só não foi encontrada uma explicação.

Cinco anos depois, a PJ reconhece que os casos de simulação de crime (33 em 2013, 39 em 2012) podem estar a aumentar, embora não haja uma explicação para isso, nem para o facto de ocorrer com maior frequência no Norte. Onde os inspetores apenas sabem que passam cada vez mais tempo a resolver crimes que por não o serem acabam por sê-lo.


Este artigo foi escrito por Ricardo Marques, jornalista do semanário Expresso.

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[1] Referência ao ano de 2014. 
[2] Entre o final de Setembro e o início de Outubro de 2014. 
[3] Setembro de 2013. 
[4] Refere-se, mais precisamente, ao dia 04 de Novembro de 2014.

2 comentários:

  1. Gosto de o ler, e partilho muitas das suas opiniões. Apenas lamento o esforço que tenho que fazer ao o ler por força de utilizar o AO'90 :-(

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  2. O comentário acima foi da minha autoria, por lapso foi postado como anónimo.

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