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O Beleka |
Este artigo surge na sequência da recente notícia “Criminalização de maus tratos a animais de companhia em votação no parlamento”. [1] Quem melhor me conhece sabe que sou um defensor acérrimo dos direitos dos animais. Posso até asseverar, com alguma jocosidade, que os meus animais – a Ninicas, a Branquinha e o Beleka (três gatos resgatados) – têm, na minha própria casa, mais direitos do que eu!
[1] Notícia publicada, v.g., no “Jornal de Notícias”, versão «online», no dia 01 de Julho de 2014, acedida e consultada em:
Como é consabido, porque pré anunciado pela generalidade da comunicação social, a criminalização de maus tratos a animais de companhia e o seu abandono vai estar em discussão e votação na especialidade, na próxima Quarta-feira, dia 09 de Julho, pelas 10H00, na Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (entretanto adiada para o dia 25 de Julho, pelas 12H00).
Entre as questões que serão discutidas, estarão, necessariamente, as seguintes:
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A Ninicas e a Branquinha |
1 – Bem jurídico protegido com a criminalização
Aqueles que estão mais familiarizados com o direito penal sabem que este visa, na sua essência, a protecção de bens jurídicos fundamentais (valores tidos como essenciais à própria existência de uma sociedade organizada). Nessa essencialidade deve o legislador tomar, como ponto de partida, os princípios constitucionais; ou seja, o crime de maus-tratos a animais só será legítimo se visar proteger um bem jurídico reconhecido pela Constituição da República Portuguesa (CRP).
Como sabemos, no nosso ordenamento jurídico, os animais são tidos como “
coisas”, abrangendo-se na noção do
art.º 202.º do Código Civil. Embora encontremos, actualmente, o termo “
coisa” no nosso Código Penal –
v.g. no crime de dano,
art.º 212.º n.º 1 –, a criminalização visa proteger, em especial, o bem jurídico propriedade (
art.º 62.º da CRP), ou seja, o proprietário face à conduta de terceiros.
[Para uma melhor compreensão das implicações materiais desta “coisificação”, cfr, neste blogue, “Animais, que direitos?”]
1.1 – Reconhecimento do estatuto jurídico do animal
Os animais são, contudo, muito mais do que meras coisas inanimadas, são seres capazes de sentir dor face a actos de crueldade e maus tratos infligidos, a maioria das vezes, pelos próprios proprietários.
Consciente desta realidade, um Grupo Parlamentar do Partido Socialista apresentou um projecto de lei, propondo o reconhecimento do estatuto jurídico do animal, por via da alteração do próprio Código Civil.
Assim, se o proprietário, relativamente às coisas em geral, tem o poder de usar, fruir e dispor [
art.º 1305.º do Código Civil (CC)] – incluindo-se, neste último poder, a extinção do direito, destruindo a coisa (móvel) ou abandonando-a – relativamente aos animais, propõe-se o aditamento do art.º 1305.º-A, que exclui, do direito de propriedade, a possibilidade de lhes infligir maus-tratos, atos cruéis, formas de treino não adequadas ou outros atos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou destruição.
Mais do que não poder fazer, o proprietário do animal passa a ter o dever de assegurar o seu bem-estar.
1.1.1 - Crítica à proposta
Sendo de enaltecer a iniciativa deste Grupo Parlamentar, julgo que ela fica aquém das expectativas.
Ao propor – através do aditamento, ao CC, do art.º 202.º-A – que a protecção jurídica, decorrente da natureza animal, opera por via de lei especial, significa que, como se justificará «infra», existirão animais de primeira (contemplados em lei especial) e animais de segunda (que continuarão a ser tratados como meras coisas).
Entre essa legislação especial, existem dois projectos de lei que visam criminalizar os maus-tratos aos animais: o primeiro, apresentado por um Grupo Parlamentar do PS, propondo uma alteração à
Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro (Protecção dos animais em geral); e o segundo, por um Grupo Parlamentar do PSD, propondo uma alteração no próprio Código Penal.
Estes projectos, no entanto, não visam os animais em geral, mas somente aqueles cuja detenção, como “
animal de companhia”, não seja proibida (ver, a este propósito, o anexo I da
Portaria n.º 1226/2009, de 12 de Outubro).
Assim, e tendo em consideração as espécies existentes no nosso país, por exemplo, dentro da família «canidae», género «canis», será punido com essa pena criminal quem maltratar a espécie «canis lupus familiaris» (cão doméstico, única espécie admitida como animal de companhia), já não, quem maltrate a espécie «canis lupus signatus» (lobo-ibérico).
Se a criminalização tem como fundamento o reconhecimento da natureza própria dos animais como seres vivos sensíveis, não se encontra justificação para tal disparidade.
1.2 – Conclusão
Há cerca de um ano e meio atrás, tive oportunidade de referir (em:
Animais, que direitos?) que a solução não passaria por criar, no Código Civil, a figura do animal, mas em criar um «Regime Jurídico do Animal» que abrangesse a profusa e por vezes repetida legislação em vigor.
Desse modo, além de se deixar o Código Civil continuar a prosseguir as suas finalidades (regulação das relações jurídicas entre pessoas, e entre estas e as coisas), evitar-se-ia a criação de distinções em algo que se pode revelar semelhante.
Mas, perante todo o exposto, qual o bem jurídico protegido com a pretensa criminalização?
Da leitura da exposição de motivos de ambos os projectos apresentados, poderíamos concluir que, perante seres vivos sensíveis, poderia estar em causa o «bem-estar animal», caso estivessem incluídos todos os animais e não apenas os animais de companhia. Se a sensibilidade é o pressuposto, a excepção não pode ser opção.
Para justificar esta preferência até se poderia usar o argumento do professor alemão BERND SHÜNEMANN, de que as ofensas à vida e à integridade física dos animais de companhia projectam-se, mais intensamente, na própria vida e integridade humanas, contribuindo, este reflexo valorativo, na formação da personalidade e no modo de agir do homem para com o seu semelhante.
Este é um argumento discutível quando se restringe a criminalização aos animais de companhia.
Perante tudo o que já foi referido, julgo que somente uma solução “
holística” (animais em geral) poderá legitimar a tutela penal – enquanto ofensa de um bem jurídico supra-individual de cunho ambiental (
art.º 66.º da CRP), que incumbe ao Estado garantir e proteger de forma ecologicamente equilibrada [
art.º 9.º als. d) e e) da CRP].
E penso que não é necessário eliminar exemplares de fauna em número significativo [
art.º 278.º n.º 1 al.ª a) do CP] ou criar perigo para um número considerável de animais [
art.º 281.º n.º 1 al.ª b) do CP] para que estejamos perante um crime contra a natureza/ambiente, já que, cada animal – mesmo os que não integram o meio ambiente ou os ecossistemas naturais (animais domésticos) – é um representante do seu género, fazendo parte desse “
número significativo” ou “
número considerável de animais”.
2 – Necessidade da Criminalização
Como já referido, a intervenção do direito penal visa a protecção de bens jurídicos fundamentais (sob pena de tutela inconstitucional). Deve, no entanto, essa intervenção, encontrar justificação na sua necessidade, e somente quando as sanções impostas por outros ramos do direito – por exemplo a coima do regime contraordenacional – se mostrem insuficientes (princípios da necessidade e da subsidiariedade do Direito Penal,
art.º 18.º n.º 2 da CRP).
Como sabemos, no que concerne à protecção dos animais de companhia, encontra-se em vigor, no nosso ordenamento jurídico, o
Decreto-lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro (c/ as alterações entretanto introduzidas até ao mais recente
Decreto-lei n.º 260/2012, de 12 de Dezembro).
Neste diploma é punido com coima de 25 € a 3.740€ [
art.º 68.º n.º 1 al.ª f)], o alojamento de animais de companhia em desrespeito das condições fixadas no art.º 8.º. Pune-se, ainda, com coima de 500€ a 3.740€, o abandono desses mesmos animais [
art.º 68.º n.º 2 al.ª c)], nos termos do art.º 6.º-A. Com a mesma coima [art.º 68.º n.º 2 al.ª d)], é punida toda a violência exercida contra os animais nos termos do art.º 7.º n.ºs 3 e 4, bem como, o maneio e treino dos animais com brutalidade, nomeadamente com pancadas e/ou pontapés [
art.º 68.º n.º 2 al.ª e)].
No que concerne às contra-ordenações referidas, são punidas as tentativas e as condutas negligentes, sendo ainda punidas as pessoas colectivas (empresas ou instituições), sendo que, neste caso, o montante máximo da coima poderá ser elevado até aos 44.890 € (
art.º 68.º n.º 3 a 5).
Não obstante a existência deste diploma, constatamos todos os dias, sobretudo nas redes sociais, uma enorme quantidade de animais maltratados e abandonados.
Mas o problema residirá na natureza da sanção (coima) ou nos mecanismos da sua aplicação? Quantas coimas foram efectivamente aplicadas desde a entrada em vigor do referido diploma?
Pois bem, a coima não satisfaz as expectativas depositadas na advertência, não porque seja insuficiente, mas porque não chega sequer a ser aplicada.
E não é aplicada porque, na maioria das vezes, a prova é de difícil obtenção – os actos são praticados no interior de propriedades privadas, longe de olhares públicos – e, noutros casos, por inércia dos próprios órgãos fiscalizadores (
art.º 66.º) face às situações que lhe são denunciadas.
No que à fiscalização concerne, é necessária a criação, dentro dos órgãos fiscalizadores, de serviços especializados de protecção animal, à semelhança do que já sucede com o SEPNA (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente) na GNR. É fundamental dotar esses serviços de meios materiais e humanos, de modo a que eles possam dar uma resposta eficaz às denúncias que lhe chegam diariamente. Além da necessária vigilância e fiscalização, é essencial informar, sensibilizar, e educar, já que, em alguns locais do nosso país, determinadas práticas são já costume.
Repare-se que, nas propostas de criminalização, os órgãos fiscalizadores são os mesmos do diploma contra-ordenacional «supra» mencionado. O que se poderá concluir daqui?
Relativamente ao resgate de animais vitimizados e à difícil actividade de obtenção de prova, por que não propor, mesmo no âmbito contra-ordenacional, a possibilidade de realização de buscas (mesmo domiciliárias) em locais onde eles se encontrem (mesmo sem haver recusa do seu titular,
art.º 67.º-A do Decreto-lei n.º 260/2012, de 12 de Dezembro)? Este meio de obtenção de prova é já utilizado noutros regimes contraordenacionais.
Vide, v.g, arts. 18.º e 19.º da Lei n.º 19/2012, de 08 de Maio (Regime Jurídico da Concorrência).
Ao nível da tramitação processual, é necessário que a entidade a quem compete a instrução dos processos de contraordenação (DGAV – Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária) consiga dar uma resposta rápida e eficaz a todos os processos que lhe são dirigidos, evitando-se a prescrição/impunidade.
Já em sede de aplicação de sanções acessórias – da competência do director-geral de Alimentação e Veterinária –, poder-se-ia propor a inclusão, no
art.º 69.º Decreto-lei n.º 260/2012, de 12 de Dezembro, de uma alínea, prevendo,
v.g., relativamente ao infractor, a privação do direito de detenção de animais por um determinado período de tempo.
E para aqueles que não têm rendimentos – e nada têm para executar,
art.º 89.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro –, em alternativa à coima, a prestação de trabalho em associações zoófilas, nos termos do
art.º 89.º-A do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro? Não seria esta uma forma de reedução do infractor?
3 – Considerações Finais
Vimos, pois, os “obstáculos” que terão que ser ultrapassados para que os maus tratos a animais de companhia possam ser criminalizados.
Primeiro, é necessário, sob pena de inconstitucionalidade da norma, delimitar o bem jurídico protegido com tal incriminação. Depois, verificar se a intervenção do direito penal é mesmo necessária, ou se os objectivos pretendidos podem ser alcançados por intermédio de um outro ramo do direito, neste caso, contraordenacional – princípio da intervenção mínima do direito penal,
art.º 18.º n.º 2 da CRP.
E, para se aferir dessa necessidade, não basta invocar o efeito (ineficácia) do regime contraordenacional, sendo necessário determinar os factores que com ele estabeleceram um nexo lógico de causalidade, de modo a se poder concluir, com alguma segurança, que uma intervenção na causa é suficiente para se alcançar o efeito pretendido.
Entretanto, aguardemos pacientemente o resultado da discussão e votação que se avizinha!
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