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Tradução de Página

Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

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quarta-feira, 28 de julho de 2021

Crime de Furto em Estabelecimentos Comerciais

Fonte: Google Imagens

    
Como sabemos, a Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro (29.ª alteração ao Código Penal), introduziu, no art.º 207.º do Código Penal (doravante denominado somente por CP), relativamente ao furto simples, um n.º 2 com o seguinte conteúdo:
"No caso do artigo 203.º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas."
    Sendo assim, no caso aí previsto, o furto reveste natureza particular, exigindo, a lei, enquanto condição de procedibilidade da acção penal, para além da queixa do ofendido, a constituição de assistente, art.º 246.º n.º 4 do Código de Processo Penal, CPP (sendo necessário o pagamento de Taxa de Justiça, art.º 8. º do Regulamento das Custas Processuais e a constituição de mandatário, art.º 70.º do CPP), e dedução de acusação particular. 

    Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 75/XII, nomeadamente no seu n.º 4, podemos compreender o motivo pelo qual o legislador optou pela natureza particular, a saber:
"A opção comercial de expor os seus produtos justifica que o proprietário providencie por adequada vigilância e a justiça penal, como «ultima ratio», só deve ser chamada a intervir nestes casos quando o ofendido deduza ele próprio a acusação."
    Incumbe, pois, ao proprietário do estabelecimento comercial, o dever especial de prevenir o furto de bens que ele próprio decidiu expor, adoptando medidas profícuas de redução dos riscos.

    Este dever resulta do estímulo ao consumo desenfreado, desencadeado sobretudo por parte das grandes superfícies comerciais (e das próprias marcas), numa altura em que, cada vez mais, as mercadorias, mais do que proporcionar a satisfação de necessidades, possibilitam a valorização individual e o reconhecimento social.

    Analisemos, doravante, os requisitos que fazem depender a natureza particular do crime em análise.


1 – Necessidade de a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público

    É no período de abertura ao público que o consumidor tem contacto directo com a mercadoria – de forma lícita, é claro! – e é atraído por ela.

    Este período pode não coincidir necessariamente com o horário de funcionamento do estabelecimento comercial, pois, como sabemos, sobretudo nas grandes superfícies comerciais, o atendimento por vezes prolonga-se para além desse horário de funcionamento (caso de clientes que permanecem para além da hora).

Fonte: Google Imagens

2 – Subtracção de coisas móveis expostas

    Para sabermos o que são, do ponto de vista jurídico, coisas móveis, necessitamos de conjugar os art.ºs 202.º, 204.º e 205.º do Código Civil (CC).

    O crime só revestirá natureza particular se as coisas móveis estiverem expostas no estabelecimento comercial, ou seja, exibidas sem qualquer barreira física (v.g., armário fechado à chave) que impeça a sua livre acessibilidade/subtracção (subtracção entendida como o poder material sobre a coisa tendo em vista a sua apropriação) por parte do cliente.


3 – Valor diminuto das coisas subtraídas

    Do ponto de vista jurídico-penal [art.º 202.º al.ª c) do CP], a coisa tem valor diminuto quando não excede uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto.

    O valor da unidade de conta [correspondente a ¼ do Indexante dos Apoios Sociais (IAS)] mantêm-se, desde 20 de Abril de 2009, em 102,00 €, devido ao facto de as sucessivas Leis do Orçamento de Estado terem suspendido a actualização anual do IAS.

    Este valor diminuto não deve ser confundido com bagatela penal (à qual se encontra associado o princípio de minimis non curat praetor). Considerar este valor como uma bagatela penal seria até uma afronta, tendo, v.g., em consideração o valor Rendimento Social de Inserção (RSI), 180,99 €.

    Sem deixar de penalizar tal subtracção, procura-se contudo evitar sobrecarregar o sistema judicial com crimes patrimoniais de pequena monta quando sobre os proprietários dos estabelecimentos comerciais impende um dever especial de os prevenir.


4 – Recuperação imediata das coisas subtraídas

    Pode suceder que, logo após a subtracção (ou a tentativa, art.ºs 22.º, 23.º n.º 1 e 203.º n.º 2 do CP), o objecto seja recuperado, incólume, ficando, de novo, na disponibilidade mercantil.

    Esta recuperação implica sempre a intervenção de um terceiro (v.g., de uma autoridade policial) sobre o agente do crime, contrariamente ao que sucede com a restituição (art.º 206.º n.ºs 2 e 3 do CP), em que a iniciativa parte deste.

    Sendo assim – e estranhamente –, se o bem for recuperado, o crime de furto reveste natureza particular (art.º 207.º n.º 2 do CP); mas, contudo, se o agente do crime voluntariamente fizer a sua entrega (restituição), o furto revestirá a natureza semi-pública (art.º 206.º n.º 2 e 3 do CP), sendo (n.º 2), ou podendo ser (n.º 3), a pena especialmente atenuada.

    No que concerne à “recuperação imediata” da coisa subtraída, entendemos que tal imediatismo coincide com o estado de flagrante delito do crime de furto (art.º 256.º do CPP). Todavia, este flagrante delito (no caso de se encontrarem preenchidos todos os requisitos do n.º 2 do art.º 207.º do CP) não legitima a detenção do agente, mas somente a sua identificação (art.º 255.º n.º 4 do CPP).

4.1 – Danificação da coisa recuperada
    Recuperada a coisa subtraída, a mesma reintegrará de novo a esfera patrimonial do titular do estabelecimento, e, desde que incólume, poderá ser novamente colocada no circuito comercial. 

    Perante este cenário (e face à natureza particular do crime), desincentiva-se o recurso à justiça penal por parte dos proprietários dos estabelecimentos comerciais (que, como já referimos, têm o dever de prevenir o furto dos bens que decidiram expor), evitando-se a sobrecarga do sistema judicial com crimes de somenos importância.

    E face à “recuperação” de um bem danificado?

    Neste caso, parece-nos que o crime deverá manter a natureza semi-pública, podendo ter lugar a detenção em flagrante delito (não admissível nos crimes de natureza particular, art.º 255.º n.º 4 do CPP) e consequente julgamento em processo sumário (art.º 381.º e sgts. do CPP).

    Contudo, ao consultarmos o crime de dano, art.º 212.º do CP, verificamos que lhe é aplicável, por via do seu n.º 4, também o art.º 207.º (natureza particular), nomeadamente o n.º 2 que temos vindo a referir, com as necessárias adaptações. 

    Mas terá realmente o legislador pretendido incluir o n.º 2 do art.º 207.º na aludida remissão? Perante o exposto, a resposta terá que ser negativa.

4.2 – Recuperação imediata após uma burla
    Imaginemos que um cidadão se desloca a um estabelecimento comercial com o intuito de adquirir uma garrafa de vinho de uma conceituada marca, cujo preço anunciado é 16,59 €.

    Retira da sua carteira um código de barras que previamente recortou de uma garrafa de vinho de outra marca, de valor inferior (3,75 €), e cola-o por cima do código de barras original.

    Coloca mais dois ou três produtos no seu cesto de compras e dirige-se à caixa de pagamento mais movimentada. Vem a pagar efectivamente 3,75 € pela garrafa de vinho. 

    O operador de caixa, desconfiando do facto, chamou um segurança, sendo o cidadão interceptado, logo de seguida, ainda na posse das referidas compras. Foi possível retirar o código de barras sobreposto, sem qualquer dano no original. A garrafa foi devolvida ao comerciante.

    Tendo em consideração tudo o que temos vindo a referir, entendemos que, no caso que aqui apresentámos, também o procedimento criminal pelo crime de burla dependeria de acusação particular, art.º 207.º n.º 2 do CP, ex vi, art.º 217.º n.º 4 do mesmo diploma legal.

    Contudo, este crime fim (a burla) teve, como instrumento, um crime de falsificação, verificando-se assim, nos termos de jurisprudência fixada, concurso real ou efectivo entre os dois crimes, burla e falsificação (este último de natureza pública).

Fonte: Google Imagens

5 – A conduta não seja cometida por duas ou mais pessoas

    Da leitura da norma em apreço (art.º 207.º n.º 2 do CP), podemos concluir, a contrario sensu da sua redacção, que, se perpetrado por duas ou mais pessoas, o crime de furto não reveste já natureza particular, mas semi-pública.

    A actuação plural (pela maior capacidade de acção e vontade reforçada) faz aumentar o risco de efectiva lesão para o bem jurídico protegido (neste caso a propriedade).

    Por este motivo, não obstante o dever de o proprietário do estabelecimento comercial adoptar uma adequada vigilância sobre os bens que decidiu expor, o legislador optou (opção de política criminal) por manter, em situações de actuação conjunta, a natureza semi-pública do crime de furto.

    Como já deixámos antever, entendemos que o cometimento por duas ou mais pessoas implica que cada uma delas (pelo menos duas) tome parte directa na execução do facto típico. É necessário portanto que exista comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria (art.º 26.º do CP).

    É essencial, pois, que cada uma dessas pessoas (por acordo ou adesão) forneça um contributo indispensável à realização do facto típico (v.g., vigiando o segurança do estabelecimento comercial).

5.1 – Conduta cometida por duas pessoas com idades de 15 e 17 anos
    Neste caso estamos perante um menor com idade inferior a 16 anos, absolutamente inimputável (art.º 19.º do CP), não estando, por isso, sujeito a medidas de natureza criminal.

    Se ambos tomam parte directa na execução do facto típico, existe, ainda que um deles seja inimputável em razão da idade, comparticipação (co-autoria). 

    Na esteira do saudoso professor Cavaleiro de Ferreira, podemos afirmar que criminosa não é a comparticipação, mas o contributo individual de cada agente que a integra. Sendo que, nos termos do art.º 29.º do CP, “cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes”.

    No caso concreto, a conduta do menor com 15 anos, sendo típica e ilícita, não é culposa por força da referida inimputabilidade (causa de exclusão da culpa). 

    Sendo assim, não releva, para efeitos da excepção prevista no art.º 207.º n.º 2 in fine, do CP, o facto de a conduta ser praticada por duas pessoas, sendo uma delas inimputável em razão da idade. 

    Destarte, relativamente à conduta do menor imputável (17 anos de idade), o procedimento criminal dependeria apenas de queixa do ofendido e não de acusação particular. No que concerne ao menor inimputável (15 anos), independentemente de se tratar de facto qualificado pela lei como crime de natureza semi-pública, o Ministério Público determinaria a abertura de inquérito (tutelar educativo) logo que recebesse a correspondente «Participação por Factos Ilícitos» (art.ºs 72.º a 74.º da Lei Tutelar Educativa). 

5.2 – Conduta cometida por duas pessoas, mãe e filho (de 15 anos de idade) – subtracção de bens de primeira necessidade 
    Imaginemos que, num supermercado, mãe e filho decidem adquirir, em conjunto, alguns ingredientes para confeccionar o seu jantar, num total de 16,00 €. Como não têm dinheiro que chegue para efectuar o pagamento, e porque se encontram esfomeados, decidem tentar a “sorte”, saindo, cada um, com metade dos produtos subtraídos.

    São interceptados, logo de seguida, com os produtos na sua posse.

    Não obstante os objectos terem sido recuperados, incólumes, o facto de a conduta ter sido cometida por duas pessoas (mãe e filho), conduz-nos à mesma solução do caso anterior, art.º 207.º n.º 2 in fine, do CP (ou seja, à natureza semi-pública).

    Contudo, entendemos que aqui existe uma particularidade. A actuação concertada visou a satisfação de uma necessidade básica e premente de ambos, a sua alimentação.

    Sendo assim, embora se encontre excluída a natureza particular do furto por força do requisito negativo previsto art.º 207 n.º 2 in fine, do CP (regime especial para furtos em estabelecimentos comerciais), entendemos que ele pode assumir essa natureza particular por via do art.º 207.º n.º 1 al.ª b) do mesmo diploma legal. [1]

[1O mesmo sucederia – o procedimento criminal depender de acusação particular –, caso mãe e filho, com fome e sem dinheiro, optassem por se deslocar a um restaurante e consumir o prato do dia, negando-se, de seguida, a solver a dívida contraída [art.º 207.º n.º 1 al.ª b), ex vi art.º 220.º n.º 3 do CP – burla para obtenção de alimentos ou bebidas]. 

6 – Considerações finais

    O facto de o furto em estabelecimentos comerciais revestir natureza particular pode comprometer, em determinadas circunstâncias, a tutela adequada do direito de propriedade.

    Como sabemos, perante um crime de furto de natureza semi-pública, qualquer cidadão pode, em caso de flagrante delito, proceder à detenção do infractor, caso não esteja presente ou não possa ser accionada em tempo útil uma autoridade judiciária ou entidade policial; devendo entregá-lo, neste caso, imediatamente a uma dessas entidades nos termos do art.º 255.º n.º 1 al.ª b) e n.º 2 do CPP.

    Contudo, face a um crime de natureza particular, tal não ser possível, havendo lugar apenas à identificação do infractor (art.º 255.º n.º 4 do CPP). 

    Neste caso, não estando presente uma autoridade policial ou uma entidade policial (ou não sendo possível a sua imediata comparência), o proprietário do estabelecimento comercial (ou, v.g., alguém encarregado pela segurança) não tem legitimidade para obrigar o infractor a identificar-se, nem deter o mesmo para efeitos de identificação.

    Como sabemos, a detenção de suspeitos da prática de crimes para efeitos de identificação [art.º 27.º n.º 3 al.ª g) da CRP] só pode ser efectivada por órgãos de polícia criminal (art.º 250.º n.º 1 do CPP). [2]


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segunda-feira, 28 de junho de 2021

Consumo de estupefacientes – crime ou contra-ordenação?

Fonte: Google Imagens

    Como sabemos, no dia 30 de Maio de 2021, deu entrada, na Assembleia da República, o Projeto de Lei n.º 859/XIV/2, da iniciativa do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda, onde é proposta a legalização da cannabis para consumo pessoal não-medicinal (ou seja, para uso recreativo), a maiores de 18 anos (aquisição e detenção limitada, contudo, ao equivalente a 30 dias de uso médio diário).

    Esta proposta visa contribuir para, inter alia: o decréscimo da actividade dos traficantes no mercado negro, muito lucrativa (com uma receita anual calculada em cerca de 125 mil milhões de euros), a qual financia, muitas vezes, o crime organizado; diminuir a manipulação da qualidade dos produtos (que coloca em risco a saúde dos consumidores; bem como para minorar o consumo desinformado de várias substâncias e o aumento da incidência de doenças junto dos consumidores.

    Ela pretende outrossim reorientar os recursos que “atualmente são utilizados no combate ao consumo de canábis e no levantamento e julgamento de contra-ordenações para o combate e investigação de crimes violentos ou crimes económicos”, podendo, tal legalização, “ser também uma importante fonte de receita fiscal”.

    Mas enquanto esta proposta não passa disso mesmo, vejamos como a aquisição e detenção de produtos estupefacientes e substâncias psicotrópicas, para consumo próprio, se enquadra, hodiernamente, no nosso ordenamento jurídico.

    Para uma melhor acomodação ao tema, avancemos com o seguinte exemplo:

    Imaginemos que, após preenchidos os pressupostos do art.º 251.º n.º 1 al.ª a) do Código de Processo Penal (CPP), o órgão de polícia criminal procede à revista de um cidadão. Num dos bolsos das calças são encontrados 8,2 gramas de cannabis (resina), numa única porção. Além deste produto, não foram descobertos quaisquer outros objectos que indiciassem a “venda a retalho”.
    Quid Juris? 

    I – Como sabemos, o art.º 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, veio estabelecer que o consumo, a aquisição e a detenção, para consumo próprio, de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (plantas, substâncias e preparações contantes das tabelas I a IV, anexas ao Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro) constitui contra-ordenação, desde que não exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. [1]

    [1] Nas tabelas I a IV, anexas ao Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, encontramos diversas plantas, substâncias e preparações consideradas estupefacientes e psicotrópicos. Mas quando é que estamos perante um estupefaciente e uma substância psicotrópica? Do ponto de vista da sua acção quer os estupefacientes quer as substâncias psicotrópicas actuam sobre o sistema nervoso central. Relativamente àqueles (estupefacientes) são susceptíveis de levar à perda de sensibilidade, à diminuição das funções físicas e mentais e da capacidade de resposta a estímulos (v.g., narcóticos, analgésicos). Quanto às substâncias psicotrópicas, provocam alterações temporárias na percepção, no humor, na consciência e no comportamento (e.g., hipnóticos, estimulantes, ansiolíticos).

    Esta quantidade tem como referência os valores estabelecidos no mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26 de Março (que tem em consideração as plantas, substâncias ou preparações de consumo mais frequente). [2]

    [2] Em situações limite, devemos ter sempre presente que os valores fixados no mapa anexo à Portaria n.º 94/96 são meramente indicativos, pois referem-se a substâncias 100% puras. E, sendo o lucro o objectivo do tráfico, a pureza tem tendência a diminuir substancialmente. Para mais esclarecimentos sobre esta matéria, o nosso artigo: Consumo de Estupefacientes - a questão do "consumo médio individual durante o período de 10 dias", in fine.

    Com base nestes valores, podemos concluir que, no exemplo que avançámos (considerando a substância 100% pura), o cidadão em causa era possuidor de uma quantidade de cannabis que daria para cerca de 16 dias, excedendo, por isso, a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período estabelecido naquele art.º 2.º da Lei n.º 30/2000, a saber, 10 dias. Então mas como se pune este excesso?

    Esta é uma questão que suscitou, ao nível da doutrina e jurisprudência, dificuldades de integração jurídico-penal desde que o art.º 28.º da referida Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, revogou expressamente (excepto quanto ao cultivo) o art.º 40.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (circunscrito ao consumo, aquisição e detenção para consumo próprio de drogas ilícitas em pequenas quantidades).

    Numa tentativa de resolução, foram desenhadas, entre outras, as seguintes soluções:
 
1.ª → Sempre que a quantidade detida exceda o consumo médio individual durante o período de 10 dias, o agente é punido como traficante, seja por via do art.º 21.º ou do art.º 25.º da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Neste sentido, v.g., o Acórdão do TRP, de 07 de Dezembro de 2005;

2.ª → Se o objectivo do legislador foi descriminalizar o consumo, o facto de o consumidor deter uma quantidade excessiva (relativamente ao consumo médio individual durante o período de 10 dias) constitui, também, um ilícito contra-ordenacional, subsumindo-se, igualmente, no art.º 2.º n.º 1 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro. Neste sentido, e.g., o Acórdão do TRC, de 15 de Dezembro de 2004.

3.ª → Apurando-se que a quantidade detida (que excede o consumo médio individual durante o período de 10 dias) se destina ao consumo, o agente é punido pelo crime de consumo (art.º 40.º do Decreto-lei n.º 15/93). Deve, assim, o art.º 28.º (norma revogatória), da Lei n.º 30/2000, ser interpretado restritivamente, ou seja, no sentido de que o art.º 40.º do Decreto-lei n.º 15/93 se encontra revogado sempre que a detenção para consumo próprio constitua contra-ordenação (nos termos do art.º 2.º da Lei n.º 30/2000). Neste sentido, p. ex., o Acórdão do TRP, de 11 de Fevereiro de 2004.

    Soluções opostas, apresentadas pelos tribunais da Relação no domínio da mesma legislação, levaram a que o Supremo Tribunal de Justiça fixasse jurisprudência nos seguintes termos (na esteira da 3.ª solução apontada):

    Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”. Ver Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2008, de 25 de Junho.

    Sendo assim, quem adquirir ou detiver, para o seu consumo, estupefacientes ou substâncias psicotrópicas (plantas, substâncias e preparações constantes das tabelas I a IV, anexas ao Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, comete um crime de consumo, podendo ser punido com uma pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

    Mas, será que esta interpretação normativa, decorrente da conjugação dos art.ºs 28.º da Lei n.º 30/2000 e 40.º n.º 2 do Decreto-lei n.º 15/93, não poderá ser entendida como uma analogia in malam partem (interpretação analógica incriminatória), e, como tal, violadora do princípio da legalidade [art.º 29.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP)]?

    Podemos encontrar a resposta a esta questão no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 587/2014, de 17 de Setembro de 2014.

Fonte: Google Imagens 


    II – Mas, antes de mais, convém recordar que não é tarefa do Tribunal Constitucional determinar qual a melhor interpretação de uma determinada norma, mas apenas decidir se a interpretação adoptada na decisão recorrida é compatível com a CRP.

    Ainda assim, parece-nos ser essa interpretação – que propende para 3.ª solução supra referida – a que melhor resulta da conjugação dos art.ºs 28.º da Lei n.º 30/2000 e 40.º n.º 2 do Decreto-lei n.º 15/93, já que:

A 1.ª solução permitiria que, inadmissivelmente, um consumidor (“doente”) fosse tratado como um traficante, só porque detém, para o seu consumo (e não para venda a terceiros), uma quantidade de estupefaciente ou de substância psicotrópica que excede o consumo médio individual durante o período de 10 dias;

Relativamente à 2.ª solução, esbarra, totalmente, no conteúdo do art.º 2.º n.º 2 da Lei n.º 30/2000, que estabelece, como fronteira entre o ilícito contra-ordenacional e criminal, que a quantidade detida (para consumo próprio) não exceda o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

    Mas vejamos, doravante, se aquela interpretação normativa é violadora do art.º 29.º n.º 1 da CRP, por se tratar de uma analogia in malam partem.

    Como nos refere o Acórdão do Tribunal Constitucional – e bem, parece-nos –, esta é, na verdade, uma analogia in bonam partem, na medida em que conduz a um estreitamento das margens de punibilidade. Mas vejamos o porquê de tal conclusão.

    Estabelece o art.º 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (referente ao tráfico de estupefacientes e psicotrópicos), que:

«Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.» (Negrito nosso)

    Ora, numa interpretação puramente gramatical, tendo o art.º 28.º da Lei n.º 30/2000 revogado expressamente o art.º 40.º do Decreto-lei n.º 15/93 (crime de consumo), “excepto quanto ao cultivo”, este deixaria de abranger a aquisição e a detenção, para consumo próprio, de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

    Sendo assim, se essa quantidade (adquirida ou detida) não excedesse a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, a conduta seria punida como contra-ordenacão, art.º 2.º da Lei n.º 30/2000.

    Contudo, caso excedesse essa quantidade, visto que a aquisição e a detenção não se encontraria incluída no art.º 40.º do Decreto-lei n.º 15/93 (por via daquela revogação), estaríamos perante um crime de tráfico, já que, consumo (art.º 40.º) e tráfico (art.º 21.º) são tipos alternativos, ou seja, caem neste (tráfico) os comportamentos que não se incluam naquele (consumo).


III – Conclusão

    Ex positis, podemos concluir que somente uma interpretação correctiva (restrição teleológica) – da derrogação operada pelo art.º 28.º da Lei 30/2000 no art.º 40.º n.º 2 do Decreto-Lei 15/93 – permite que um consumidor seja tratado como tal (e não como um traficante), possibilitando o seu tratamento e consequente integração social (art.º 42.º e sgts. do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro). Esta é, por certo, uma analogia, mas que reduz a responsabilidade criminal do agente, sendo, por isso, uma analogia, constitucionalmente permitida.

    Sendo assim, se um indivíduo é possuidor de uma certa quantidade de estupefaciente ou substância psicotrópica, inexistindo indícios de que a mesma não se destina ao seu consumo, podemo-nos deparar com duas situações distintas:

1.ª – A quantidade detida não excede o consumo médio individual durante o período de 10 dias e estamos perante uma conduta contra-ordenacional, subsumível no art.º 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro; 

2.ª – A quantidade detida excede o consumo médio individual durante o período de 10 dias e estamos perante um crime de consumo, p. e p. nos termos do art.º 40.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; o qual deverá ser interpretado nos seguintes termos:


CAPÍTULO IV
Consumo e tratamento

ARTIGO 40.º
Consumo

    1 - Quem, para o seu consumo, cultivar plantas compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. Se a quantidade de plantas cultivadas pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.

    2 - Quem, para o seu consumo, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.


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quinta-feira, 27 de maio de 2021

Procedimento de Identificação do Suspeito de uma Contra-Ordenação. Será admissível a Identificação Coactiva?

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    Decidi escrever sobre uma matéria que muitas dúvidas tem suscitado, sobretudo ao nível dos profissionais que com ela lidam no seu dia-a-dia, a de saber qual o procedimento a adoptar perante um suspeito da prática de uma contra-ordenação que não seja possuidor de qualquer documento de identificação ou equivalente legal, ou que, em casos mais extremos, se recusa a identificar-se.

    No que a esta matéria concerne, perfilho da opinião de que será também aplicável o procedimento de identificação previsto no art.º 250.º do Código de Processo Penal (CPP). Passarei a fundamentar tal convicção.

    Alguns autores entendem que a recusa de identificação, pelo agente de uma contra-ordenação, perante uma autoridade policial, enquanto conduta violadora de um dever de identificação, se deve subsumir no tipo de crime de desobediência, após efectuada a devida cominação [art.º 348.º n.º 1 al.ª b) do Código Penal]. V.g. Parecer da PGR, n.º 13/96.

    Admito que, cominar tal recusa de identificação com o crime de desobediência, seria uma forma eficaz de dissuadir quem o pretende fazer, aspirando inviabilizar todo o processo contra-ordenacional. No entanto, tal cominação é violadora do princípio da subsidiariedade do direito penal (ou da intervenção mínima), como tal consagrado no art.º 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

    Num Estado de Direito Democrático, a intervenção do direito penal deve surgir como ultima ratio, somente quando os outros ramos do direito falhem, protegendo, subsidiariamente, certos bens jurídicos tidos como fundamentais. Desse modo, não será lícito recorrer a ele com o objectivo de sancionar violações de não evidente dignidade penal, como é o caso dos ilícitos de mera ordenação social.

    Contudo, hodiernamente, as contra-ordenações constituem a principal área de actividade da polícia (v.g., infracções rodoviárias, ruído em excesso, consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas). Apesar de os bens jurídicos tutelados pelos diplomas contra-ordenacionais não revestirem a importância ética daqueles que são tutelados pelas normas penais, necessário se torna, no entanto, que a repressão dessas infracções seja dotada de mecanismos eficazes de fiscalização e controlo, de modo a permitir a aplicação da correspondente sanção.

    Impõe-se, necessariamente, para a prossecução do processo contra-ordenacional, munir a actividade policial de instrumentos legais aptos a proceder à identificação do seu autor, sob pena da sua não responsabilização. Consciente dessa necessidade, o legislador estabeleceu, no art.º 49.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro [Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO)], a possibilidade de as autoridades administrativas competentes, bem como as autoridades policiais, poderem “exigir ao agente de uma contra-ordenação a respectiva identificação”, incumbindo-lhes, ainda, “tomar as medidas necessárias para impedir o desaparecimento de provas” (art.º 48.º n.º 1 do RGCO), onde se inclui a elaboração do auto de notícia por contra-ordenação, de forma cabal, pela autoridade autuante, prova documental da constatação daquela infracção e da respectiva autoria.

    Do ponto de vista constitucional, podemos aferir, da consulta do art.º 32.º n.º 10, da CRP, que existe uma equiparação entre as garantias dos processos criminal e contra-ordenacional, em termos de direito de audiência e defesa. No que concerne ao recurso, garantido no processo criminal (art.º 32.º n.º 1, da CRP), encontra-se igualmente garantido aos cidadãos no processo contra-ordenacional (contencioso administrativo), sempre que se vejam lesados por qualquer acto material (art.º 268.º n.ºs 4 e 5 da CRP), onde se inclui a identificação na qualidade de suspeito de uma contra-ordenação.

    O próprio RGCO não afasta essa equiparação, atribuindo, no seu art.º 48.º n.º 2, às autoridades policiais, direitos e deveres equivalentes aos que lhe são conferidos em matéria criminal.

    Tendo em consideração o elemento histórico, enquanto factor hermenêutico, não podemos deixar de “espreitar” o anterior regime geral das contra-ordenações (Decreto-lei n.º 232/79, de 24 de Julho), o qual, no seu art.º 42.º, possibilitava, expressamente, a detenção do autor de uma contra-ordenação pelo tempo estritamente necessário à sua identificação, em caso algum superior a 24 horas.

    Esta possibilidade viria a ser afastada do regime contra-ordenacional por haver dúvidas sobre a sua constitucionalidade. Contudo, nessa altura, ainda não existia a alínea g) do art.º 27.º n.º 3 da CRP. Esta somente viria a ser introduzida na quarta revisão constitucional (operada através da Lei n.º 1/97, de 20 de Setembro), com a seguinte redacção: “Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários”.

    Este preceito – que se manteve entretanto inalterado – não esclarece qual a natureza da suspeita (se estamos perante suspeitos da prática de crime ou de contra-ordenação). Ainda assim, existem autores que defendem [1], vigorosamente, que o suspeito, aqui previsto, coincide, na íntegra, com a noção de suspeito do art.º1.º al.ª e) do CPP.
    
    [1] Curiosamente, estes autores sustentam a sua posição na parte final de uma anotação, de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ao art.º 27.º [in, Constituição da República Portuguesa Anotada (Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007), mais precisamente na parte XII, da pág. 483], omitido a parte inicial, a saber: “Fica em aberto o sentido de suspeito para efeitos de detenção para identificação”, sendo que, só em princípio, “ele tem o sentido densificado por leis penais de processo penal”.

    Mas, a ser assim, não seriam inconstitucionais, v.g., os art.ºs 4.º n.º 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (detenção para identificação em regime contra-ordenacional); e 28.º n.º 1 al.ª a) da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto (uma suspeita ainda não jurídico-penalmente relevante)?

    No que concerne ao art.º 4.º n.º 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, estabelece que:

    Quando não seja possível proceder à identificação do consumidor no local e no momento da ocorrência, poderão as autoridades policiais, se tal se revelar necessário, deter o consumidor para garantir a sua comparência perante a comissão, nas condições do regime legal da detenção para identificação”. Sublinhado nosso.

    Face ao exposto, e perante a falta de formalismos na exigência estabelecida no supra referido art.º 49.º do RGCO, propendemos em considerar que, no âmbito contra-ordenacional, serão aplicáveis as directrizes do art.º 250.º do CPP, por força da subsidiariedade patente no art.º 41.º n.º 1, do mesmo RGCO, sempre que o seu autor não seja possuidor de documento de identificação ou se recuse a identificar. 


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    No que concerne à recusa de identificação, como já se deixou transparecer, entendemos que não deve ser cominada com o crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º n.º 1 al.ª b) do CP, já que a “impossibilidade de identificação”, prevista no art.º 250.º n.º 6 do CPP, inclui essa recusa.

    Cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2013, “só a ausência completa de qualquer expediente compulsivo previsto numa disposição legal, destinado a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente, ou a previsão na lei de uma consequência, que se mostre na prática claramente insuficiente, autorizará a cominação ad hoc.

    A Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, no seu art.º 3.º n.º 1, era bastante esclarecedora, ao prever que, “(n)os casos de impossibilidade de identificação, nos termos do artigo anterior, ou nos casos de recusa de identificação, terá lugar um procedimento de identificação que consiste em conduzir o identificado ao posto policial mais próximo…”.

    Embora a doutrina e a jurisprudência maioritárias considerem, esta Lei, revogada tacitamente pelo art.º 250.º do CPP, na versão introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, por incompatibilidade entre ambas e pela posterioridade desta, tal incompatibilidade nada tem que ver com a inclusão da recusa naquele procedimento de identificação.

    Assim, embora na versão hodierna do art.º 250.º n.º 1 do CPP, não encontremos expressamente “nos casos de recusa de identificação”, essa recusa está implícita “na impossibilidade de identificação”. Parece-me que a possibilidade de conduzir um suspeito, ao posto policial mais próximo, e compeli-lo (obrigá-lo, forçá-lo, constrangê-lo) a ali permanecer, só faz sentido quando aquele se recusa, pois no caso de a condução ser voluntária não é necessário o uso de força.

    Parece-me, também, que se o legislador pretendesse a responsabilização penal de quem se recusa a identificar, tê-lo-ia previsto, à semelhança do que sucede, e.g., nos arts. 141.º, n.º 3, e 342.º, n.º 2, ambos do CPP, em vez de sujeitar, tal responsabilização, à cominação ad hoc a que se reporta a al.ª b) do n.º 1 do art.º 348.º do CP.

    A propósito da recusa de identificação, pode ler-se, no Acórdão do TRL, de 21 de Maio de 2020, proc. 348/16.2GGSNT.L1-9, rel. Cristina Branco:

    (…) se perante a recusa do arguido em se identificar a autoridade policial efectuou de imediato a cominação do crime de desobediência, sem antes desenvolver qualquer dos procedimentos legais previstos no art. 250.º do CPP para ultrapassar tal situação – que acabou por ser resolvida, já depois daquela cominação, precisamente com recurso ao mecanismo previsto no n.º 6 daquele preceito, que se mostrou idóneo a produzir o resultado pretendido – a ordem com a cominação do crime de desobediência não era necessária, carecendo, assim, para efeitos do preenchimento do tipo incriminador, de validade substancial à luz do princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena (art. 18.º, n.º 2, da CRP), pelo que a sua inobservância não constitui crime de desobediência.” (sublinhado nosso)

    Somente esta solução (a de aplicação subsidiária do art.º 250.º do CPP ao regime contra-ordenacional) resolve o problema sentido pelas forças policiais quando se deparam, em flagrante delito, com uma contra-ordenação, cujo autor, não se recusando a identificar, alega, no entanto, não possuir qualquer documento de identificação, não sendo possível certificar, no local, a sua identidade, com a exactidão e certeza necessárias.

    Perante a situação fáctica anunciada, sendo impossível qualquer meio de identificação alternativo (v.g., alguém que apresentasse o seu documento de identificação) e estando vedada a sua condução ao posto policial, restaria, aos agentes de autoridade, anotarem os dados pessoais verbalmente fornecidos pelo autor da infracção. É claramente inadmissível esta via, sob pena de se desacreditar o processo contra-ordenacional, bem como a própria autoridade, credibilidade e eficácia policial, neste âmbito.

    Repare-se que, até Março de 2013, mesmo que o identificando declarasse, verbalmente, dados falsos sobre a sua identidade, não resultaria daí qualquer sanção. Na vigência do Decreto-lei n.º 33.725, de 21 de Junho de 1944 – que viria a ser revogado pelo art.º 53.º al.ª a) da Lei n.º 33/99, de 18 de Maio –, era punível a prestação de falsas declarações sobre a identidade. Estabelecia o art.º 22.º que: "Aquele que declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, será punido com prisão até seis meses.

    Visando colmatar esta lacuna, foi aditado, ao Código Penal, através da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, o art.º 348.º-A (com epígrafe “falsas declarações”). Agora, destinando-se, as falsas declarações, a ser exaradas em documento autêntico (v.g., auto de notícia por contra-ordenação, art.º 169.º do CPP, ex vi art.º 99.º n.º 4), poderá, o declarante, ver subsumida a sua conduta no n.º 2 do art.º 348.º-A do CP (pena de prisão até 2 anos ou pena de multa).

    Esta solução é aquela que melhor se adequa ao princípio da proporcionalidade, como tal entendido na 2.ª parte do art.º 18.º n.º 2 da CRP. Como visto supra, a adopção do procedimento de identificação previsto no art.º 250.º do CPP, ex vi art.º 41.º n.º 1 do RGCO, relativamente à posição doutrinal que entende que a recusa de identificação deve ser cominada com o crime de desobediência, art.º 348.º n.º 1 al.ª b) do CP, permite cumprir o princípio da subsidiariedade do direito penal, possibilitando, ainda, a protecção do bem jurídico “função de autoridade pública” (Teresa Beleza, pág. 105), de forma eficaz, através de um mecanismo menos ofensivo do que o recurso à sanção penal.

    É, pois, muito menos ofensivo, face à recusa, deter o suspeito de uma contra-ordenação pelo tempo estritamente indispensável à identificação (art.º 27.º n.º 3 al. g) da CRP), tempo esse que se poderá alongar até às 6 horas (art.º 250 n.º 6 do CPP), do que deter esse mesmo suspeito pelo crime de desobediência, que justifica uma detenção que se poderá prolongar até às 48 horas [art.º 254.º n.º 1 al.ª a) do CPP].

    Relativamente à condução ao posto policial de quem não possui qualquer documento de identificação – apanágio de quem se pretende furtar à responsabilidade contra-ordenacional –, para além de indispensável do ponto de vista social, sob pena da sua ineficácia, corresponde a uma restrição de direitos, liberdades e garantias, necessária, nos termos da 2.ª parte do art.º 18.º n.º 2 da CRP, “para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos", a saber, as funções de autoridade ao serviço do interesse público. A restrição dos direitos, liberdades e garantias, como meio de “satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”, é uma possibilidade admitida no art.º 29.º n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), ex vi, art.º 16.º n.º 2 da CRP.

    Em abono da minha convicção está o facto de que, desde o momento da abordagem de um suspeito da prática de um ilícito contra-ordenacional, ele vê-se, desde logo, privado da sua liberdade. Essa privação não começa somente quando ele é conduzido ao posto policial. Há situações, até, em que a condução ao posto policial poderá ser menos ofensiva dos direitos fundamentais. Assim, teremos, v.g., o caso de determinado indivíduo que é abordado num local onde é sobejamente conhecido e respeitado. Permanecer naquele local iria certamente afectar o seu bom-nome e reputação, bem como a sua imagem (art.º 26.º n.º 1 da CRP), o que não aconteceria se fosse conduzido ao posto policial, recôndito dos olhares curiosos.

Identificação de menores com idade inferior a 16 anos

    Como sabemos, nas contra-ordenações [art.º 10.º do Regime Geral das Contra-ordenações, RGCO (Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro)], tal como nos crimes [art.º 19.º do Código Penal (CP)], os menores são inimputáveis.

    Sendo assim, a um menor com idade inferior a 16 anos (conta o dia seguinte ao do seu aniversário) não poderá ser imputada a responsabilidade criminal ou contra-ordenacional. Mas poderá essa responsabilidade ser transmitida do menor para os seus pais?

    No que concerne à responsabilidade penal, a resposta é claramente negativa, desde logo, por força do art.º 30.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Quanto à responsabilidade contra-ordenacional a solução não é unânime.

    Porém, a minha modesta opinião – que penso acompanhar a doutrina e jurisprudência maioritárias – propende no sentido de considerar que também a responsabilidade contra-ordenacional é intransmissível. Como já teve oportunidade de se pronunciar, et alii, o Supremo Tribunal Administrativo, o princípio da intransmissibilidade das penas, previsto no já referido art.º 30.º n.º 3 da CRP, deve aplicar-se a qualquer tipo de sanção, por ser a única solução conciliável com os seus fins justificativos, a saber, a prevenção e repressão de contra-ordenações (não a obtenção de receitas).

    Devemos ter em atenção, no entanto, que a inimputabilidade é uma causa de exclusão da culpa, mas não da ilicitude; ou seja, apesar de a sua responsabilidade criminal e contra-ordenacional se encontrar excluída por falta do requisito da culpa, o facto que o menor praticou continua a ser ilícito, dada a sua desconformidade com a lei vigente.

    Se esse facto ilícito – praticado por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos – fosse qualificado pela lei como crime, poderia levar à aplicação de uma medida tutelar educativa, prevista na Lei n.º 166/99, de 14 de Fevereiro, estando o procedimento de identificação previsto no art.º 50.º deste mesmo diploma legal.

    Relativamente a factos ilícitos praticados por menores com idade inferior a 16 anos, qualificados pela lei como contra-ordenação, desconhece-se qualquer diploma semelhante.

    Excluída a responsabilidade contra-ordenacional do menor e não havendo norma semelhante à contida no art.º 135.º n.º 7 al.ªs b) e c), do Código da Estrada [2], e art.º 8.º n.ºs 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT [3] (para o qual remeteu, v. g., o art.º 12.º da Lei n.º 28/2006, de 04 de Julho – Transgressões em Transportes Colectivos de Passageiros, após a entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro [4]), que responsabilizam, pela contra-ordenação, os seus pais; o facto ilícito por si praticado, apenas poderá ser tido em conta para efeitos de responsabilidade civil [art.º 483.º do Código Civil (CC)], esta extensível aos pais por força do art.º 491.º do mesmo CC.

[2Estabelece, o art.º 135.º n.º 7 al.ªs b) e c), do Código da Estrada, que:
7 - São também responsáveis pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar:
(…)
b) Os pais ou tutores que conheçam a inabilidade ou a imprudência dos seus filhos menores ou dos seus tutelados e não obstem, podendo, a que eles pratiquem a condução;
c) Os pais ou tutores de menores habilitados com cartas de condução da categoria AM, com a menção da restrição 790;”

[3Nos termos do art.º 8.º n.ºs 4 e 5 do RGIT:
4 - As pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas, cometerem infracções fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as providências necessárias para os fazer observar a lei.
5 - O disposto no número anterior aplica-se aos pais e representantes legais dos menores ou incapazes, quanto às infracções por estes cometidas”.

[4] Até à entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado 2014), se um menor, com idade inferior a 16 anos, fosse surpreendido a usufruir de sistema de transporte colectivo de passageiros sem título de transporte válido, não lhe poderia ser aplicada qualquer coima, devido à sua inimputabilidade, nem a mesma poderia ser transmitida aos seus pais. Com a entrada em vigor daquela Lei, o art.º 12.º, da Lei n.º 28/2006, de 04 de Julho, passou a remeter as transgressões em transportes colectivos de passageiros para o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), sendo competente para a instauração e instrução de processos de contra-ordenação e aplicação de coimas o serviço de finanças da área do domicílio fiscal do agente de contra-ordenação (art.º 10.º da Lei n.º 28/2006, de 04 de Julho). No caso de a infracção ser praticada por menor, serão, agora, solidariamente responsáveis os seus pais, por via do art.º 8.º n.ºs 4 e 5 do RGIT.

    Para este fim, a identificação do menor terá que decorrer no local, nunca podendo ser conduzido ao Posto Policial. Tendo em consideração que a maioria circula sem qualquer documento de identificação, até porque nada obriga ao contrário, podemos estar perante um problema irresolúvel.

    Note-se, no entanto, que um polícia experiente poderá, aquando da identificação, aperceber-se da falsidade dos dados de identificação fornecidos pelo menor, conduta actualmente qualificada pela lei como crime (falsas declarações, art.º 348.º-A do Código Penal), podendo, neste caso, aquele ser conduzido ao posto policial, por tempo nunca superior a 3 horas (art.º 50.º da Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro).

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