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Tradução de Página

Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

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quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Jurisprudência Destacada: Forças Policiais - Poder de Exigir a Identificação - Cominação de Desobediência - Detenção

Fonte: Imagens Google

    O Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 07/11/2023 (proc. n.º 59/22.0GBABT.E1, rel. Moreira das Neves), decidiu que:

As forças policiais não podem exigir a identificação de uma pessoa que não seja suspeita da prática de qualquer crime, sob pena de desobediência. Não sendo legítima a sequente detenção por prática deste crime.

    No que concerne aos factos, em suma:

«No dia 20 de março de 2022, pelas 20h30, o arguido encontrava-se no Largo …., junto ao lote …, …, ali estando presentes os militares da GNR, devidamente uniformizados e identificados, BB e CC, para tomar conta da ocorrência de desacatos familiares.

Nessas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido dirigiu-se aos militares da GNR BB e CC colocando o seu corpo entre os dos militares e os dos visados pela ação de fiscalização levada a cabo por estes.

O militar da GNR, sargento BB transmitiu ao arguido que tinha que se afastar e permitir que os militares procedessem à identificação dos visados no desacato que ocorrera, ao que o arguido recusou afastar-se.

Nessa sequência, o militar da GNR BB transmitiu ao arguido que perante a sua conduta de tentar impedir a intervenção dos militares sobre os intervenientes no aludido desacato, o mesmo teria que se identificar.

O arguido dirigiu-se ao militar da GNR Sargento BB afirmando que não se identificava.

O militar da GNR BB transmitiu ao arguido que caso não apresentasse a sua identificação incorria na prática de um crime de desobediência e procederia à sua detenção.

O militar da GNR solicitou então ao arguido novamente a identificação e transmitiu-lhe que, caso não o fizesse, incorria num crime de desobediência, ao que o arguido negou mais uma vez fornecer a sua identificação.

O militar BB deu voz de detenção ao arguido, tentou segurar-lhe o braço para proceder à sua algemagem. (…)»

    De referir que esta decisão do TRE, relativa ao poder de exigir a identificação de uma pessoa, é bastante redutora, pois resulta de uma situação concreta à qual foram aplicadas as normas do processo penal (não podendo, pois, ser adoptada como regra geral).

    Parece evidente que “(a)s forças policiais (…) podem exigir a identificação de uma pessoa que não seja suspeita da prática de qualquer crime, sob pena de desobediência. (…) sendo legítima a sequente detenção por prática deste crime”, desde logo, v. g.,:

ao agente de uma contra ordenação (art.º 49.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro); [1]


no âmbito de uma operação especial de prevenção criminal (ainda a montante da fundada suspeita da prática de um crime, cfr. art.º 109.º n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições); ou

por razões de segurança interna (também a montante da fundada suspeita da prática de um crime, cfr. art.º 28.º n.º 1 al.ª a) da Lei de Segurança Interna. 

    Deixo aqui algumas questões para reflexão:

1.ª Entendem que o resultado seria o mesmo se os agentes cominassem a desobediência, não à recusa de identificação, mas à recusa de afastamento de CC (que impedia que os militares procedessem à identificação dos visados no desacato que ocorrera)?

2.ª E se fosse exigida a identificação de CC na qualidade de testemunha, cominando eventual recusa com o crime de desobediência? [2]

[2] Sobre esta matéria, recomendamos o nosso artigo denominado “Testemunhas” - Recusa de Identificação.



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quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Jurisprudência destacada: Circulação em rotunda – acidente de viação – repartição de culpas

 

Fonte: Google Imagens


    Considerando a imagem apresentada  que representa o modo correcto de circular numa rotunda –,  imaginemos que:

A viatura n.º 1 (amarela), circulando na via da direita, em vez de sair na saída n.º 1 (descrita pelas setas amarelas), continuou a circular na mesma via.

A viatura n.º 2 (vermelha), efectuou o percurso representado pela seta vermelha.

Esta última colidiu com a viatura n.º 1 no ponto assinalado com a letra “X”.

Quid Juris?


    Nos termos do art.º 14.º-A n.º 1 al.ª c) e n.º 3, do Decreto-lei n.º 114/94, de 03 de Maio (diploma que aprovou o Código da Estrada):

"1 - Nas rotundas, o condutor deve adotar o seguinte comportamento:
(…)
b) Se pretender sair da rotunda na primeira via de saída, deve ocupar a via da direita;
c) Se pretender sair da rotunda por qualquer das outras vias de saída, só deve ocupar a via de trânsito mais à direita após passar a via de saída imediatamente anterior àquela por onde pretende sair, aproximando-se progressivamente desta e mudando de via depois de tomadas as devidas precauções;
(…)
3 - Quem infringir o disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 1 e no n.º 2 é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300."

    No caso que apresentámos, o condutor da viatura n.º 1 (amarela), apesar de não pretender sair na 1.ª saída, circulou na rotunda pela via da direita, violando, dessa forma, o art.º 14.º-A n.º 1 al.ª c) do Código da Estrada.

    Por seu turno, o condutor da viatura n.º 2 (vermelha), pretendendo sair na 2.ª saída, e após passar a via de saída n.º 1, ocupou a via de trânsito mais à direita. Contudo, a lei exigia que o fizesse de modo progressivo, só mudando efectivamente de via depois de tomadas as devidas precauções.

    O facto de o condutor da viatura n.º 1 (amarela) seguir indevidamente na faixa exterior não permite ao condutor da viatura n.º 2 (vermelha) abalroá-lo, por forma a poder sair na saída pretendida.

    Sendo assim, também o condutor da viatura n.º 2 (vermelha) violou o art.º 14.º-A n.º 1 al.ª c) do Código da Estrada.

    Considerando que a ilicitude deve ser aferida em função do ordenamento jurídico considerado na sua totalidade, e que as condutas de ambos os condutores constituem contraordenações, com consequente violação de direitos absolutos, então estamos simultaneamente perante ilícitos civis.

    Sendo assim, tais factos [subsumíveis no art.º 14.º-A n.º 1 al.ª c) do Código da Estrada] constituem fontes de responsabilidade civil para ambos os condutores. E, tendo ambos contribuído igualmente para o sinistro, devem responder em partes iguais pelos danos verificados, cfr. art.º art.º 570.º n.º 1 do Código Civil.


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Para uma fundamentação mais desenvolvida, consultar, et. al., o Acórdão do TRL, de 02 de Maio de 2023, proc. 455/22.2T8PDL.L1-7, rel. Carlos Oliveira, consultado AQUI em 15/11/2023.

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quarta-feira, 29 de março de 2023

“Testemunhas” – Recusa de Identificação

 

Fonte: Google Imagens

    Ao consultarmos (aqui) o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10 de Janeiro de 2023 (proc. n.º 193/21.3GDPTM.E1, rel. Fernando Pina), podemos ler, logo no seu sumário:

«É ilegítima a ordem da autoridade policial, dirigida a um cidadão, para que se identifique, por se encontrar no local onde ocorreram factos que poderão constituir crime de violência doméstica, por ele presenciados, com vista à posterior inquirição na qualidade de testemunha

    Como corolário, defende-se, neste aresto, que a recusa de identificação a essa ordem emanada por autoridade policial não se subsume no tipo de crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º n. º 1 al.ª b) do Código Penal (CP).

    Para escorar esta conclusão, argumenta-se, per summa capita, que:

no que concerne à obrigação de identificação, quer o art.º 250.º n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP), quer o art.º 27.º n.ºs 2 e 3 al.ª g) da Constituição da República Portuguesa (CRP), especificam "suspeitos", e não outros sujeitos (e. g., testemunhas).

    E, no caso concreto, por se encontrar no interior da sua residência:

o visado localizava-se fora do âmbito espacial do dever de identificação previsto no art.º 250.º n.º 1 do CPP, a saber, lugares púbicos, abertos ao público ou sujeitos a vigilância policial;

não se exigia qualquer medida cautelar urgente para assegurar meios de prova, nos termos do art.º 249.º n.ºs 1 e 2 al.ª b) do CPP, porquanto existiam várias outras formas de chegar, futuramente, à sua identidade (v. g., junto de vizinhos, da EDP); e

 após obtida a identificação por intermédio destes meios alternativos, o visado poderia ser notificado para comparecer nos serviços do Ministério Público ou do OPC competente, a fim de ser inquirido como testemunha e, na eventual falta de comparência, poderiam ser, dentro de toda a legalidade, emitidos mandados de comparência.  


Observações

    Parece-nos que o teor do sumário do Acórdão sup. cit. é susceptível de induzir o leitor em erro, já que sugere que (de forma genérica) são ilegítimas todas as ordens das autoridades policiais, dirigidas aos cidadãos, para que se identifiquem, por se encontrarem no local onde ocorreram factos que poderão constituir crime, por eles presenciados, com vista à posterior inquirição na qualidade de testemunhas.

    Afigura-se-nos que não será assim.

    Nos termos do art.º 249.º n.ºs 1 e 2 al.ª b) do CPP:

 «Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
2 - Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior:
(…)
b) Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição».

    Relativamente a esta colheita de informações, Eduardo Maia Costa, et. al. [1] (in Código de Processo Penal Comentado), em anotação ao art.º 249.º, refere que:

«a colheita de informações de pessoas, referida na al. b) do nº 2 é de natureza informal, não vinculando as pessoas contactadas à condição de testemunhas».

[1] Também Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 651) segue a mesma posição.

    Sendo assim, e de acordo com estes autores, esta colheita informal de informações “pende no sentido da ausência de vinculação a qualquer dever de identificação e certamente muito menos uma obrigatoriedade de identificação sob pena de prática de um crime”.

    Se concordamos com o expendido em relação ao art.º 249.º n.º 2 al.ª b) do CPP, o mesmo já não sucede relativamente ao art.º 250.º n.º 8 do CPP.

    Conforme referido no voto de vencido que integra o acórdão que temos vindo a referir:

«a ordem dada a um cidadão que presenciou um crime” para “que forneça a sua identidade por forma a mais tarde poder eventualmente ser inquirido como testemunha no respetivo inquérito criminal e no julgamento, insere-se no âmbito do pedido de fornecimento de informações tendentes à descoberta e à conservação de meios de prova, no caso, a testemunhal, que poderiam perder-se» (art.º 250.º n.º 8 do CPP).

    E, considerando que a norma prevista no art.º 250.º n.º 8 do CPP tem natureza processual, pode e deve ser interpretada de “forma analógica ou extensível ao regime previsto no artigo 250.º, n.º 1 do CPP tendo em consideração a ordem jurídica considerada no seu conjunto”.

    Sendo assim, decorre daqui um dever de identificação dessas pessoas, sempre que elas se encontrem em lugares públicos, abertos ao público ou sujeitos a vigilância policial, e não no interior da sua residência, como sucedeu no caso concreto.

    A recusa de identificação, nestes termos – e considerando o disposto no art.º 27.º n.ºs 2 e 3 al.ª g) da CRP –, subsume-se no tipo de crime de desobediência, após efectuada a correspondente cominação, cfr. art.º 348.º n.º 1 al.ª b) do CPP.


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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Crime de ameaça – mal futuro vs mal iminente

 

Fonte: Google Imagens

Atentemos no seguinte caso ficcionado (que bem podia ser real):

No dia 03 de Fevereiro de 2023, cerca das 14H00, na Rua ….., o cidadão … AA dirigiu-se ao agente da Polícia de Segurança Pública … BB, com o intuito de pedir satisfações relativamente ao facto de o seu automóvel ter sido rebocado.

No decurso do diálogo estabelecido, o cidadão …AA dirigiu-se ao referido agente dizendo: «Estão aqui para sacar dinheiro. Parto-te a cara».
(…)

Quid Juris?


    Em abstracto e de forma apriorística, a conduta do cidadão …AA parece subsumir-se no tipo de crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º n.º 1 do Código Penal (CP), eventualmente agravado pelo art.º 155.º n.º 1 al.ª a), por referência aos art.ºs 143.º n.º 1, 145.º n.ºs 1 al.ª a) e 2, e 132.º n.º 2 al.ª l), todos do CP. 

    Estabelece o art.º 153.º n.º 1 do CP que:

Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

    Atendendo à sua classificação dogmática, podemos caracterizar o crime de ameaça como um crime de perigo abstracto-concreto, também conhecido como crime de aptidão ou de perigo hipotético.

    Exige-se, assim, ao intérprete e aplicador do direito, a comprovação, no caso concreto, de uma aptidão da acção (de acordo com a experiência comum) para atingir o bem jurídico protegido pela norma (liberdade de decisão e acção), ainda que, em concreto, ele não seja atingido.

Relativamente a esta aptidão, Taipa de Carvalho [1] afirma que:

O mal ameaçado tem que ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal.

[1] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 343.

    Neste aspecto, a jurisprudência tem-se dividido. Alguns tribunais, na esteira da posição perfilhada por Taipa de Carvalho, têm entendido que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça. [2]

[2] Vide, et al., Acórdão do TRC, de 30/05/2012, proc. 366/10.4GCTND.C1, rel. Jorge Dias, acedido e consultado aqui em 06/02/2022.

    Outros tribunais têm entendido que o mal iminente, embora próximo, é ainda um mal futuro. E, sendo assim, tem que se distinguir, no caso concreto, o que é ameaça e o que são atos de execução (tentativa) de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer, nos termos do art.º 22.º n.ºs 1 e 2 al.ª c), do CP. [3[4]

[3] Estabelece o art.º 22.º n.ºs 1 e 2 al.ª c), do CP, que:
1 - Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
2 - São actos de execução:
(…)
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.
[2] Vide, et. al., Acórdão do TRE, de 04/112010, proc. 13/07.1GLBJA.E1, rel. Carlos Coelho, acedido e consultado aqui em 06/02/2023.

    No caso prático que enunciámos, a expressão “parto-te a cara”, dirigida pelo cidadão … AA ao agente da Polícia de Segurança Pública … BB, pode ser considerada, no caso concreto, um mal presente e iminente.

    Para se desconsiderar o crime de ameaça – e na trilha desta última posição jurisprudencial –, tal expressão teria que ser proferida num contexto de envolvimento físico ou de discussão impetuosa indiciadora de confronto físico.

    Neste caso, a conduta do cidadão … AA subsumir-se-ia no tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143.º n.º 1, 145.º n.ºs 1 al.ª a) e 2, e 132.º n.º 2 al.ª l), todos do CP, na forma tentada, art.º 22.º n.ºs 1 e 2 al.ª c), e 23.º n.º 1, do CP.

    Não existindo qualquer acto de execução [cfr. art.º 22.º n.ºs 1 e 2 al.ª c), do CP], a conduta do cidadão … AA subsumir-se-ia no tipo de crime de ameaça agravada, art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al.ª a), por referência aos art.ºs 143.º n.º 1, 145.º n.ºs 1 al.ª a) e 2, e 132.º n.º 2 al.ª l), todos do CP, se, no caso concreto, o mal anunciado tivesse aptidão para se projectar na liberdade de decisão e de acção futura do agente da Polícia de Segurança Pública … BB.


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sábado, 28 de janeiro de 2023

Jurisprudência destacada: ofensa à integridade física – poder/dever de correcção

Fonte: Google Imagens

→ Ofensa à Integridade Física;
→ Poder/dever de correcção;



I – Dos factos


1.º O arguido é pai do ofendido B, nascido a 6/9/2007;

2.º No dia 16/10/2020, pelas 18h45m, num campo na proximidade da Escola Secundária ..., sita na ..., no Montijo, porque o menor tinha terminado as aulas às 17h00m, já tinha perdido dois autocarros e mantinha o telemóvel no bolso sem som, não respondendo aos telefonemas do arguido, este dirigiu-se ao local, e encontrando o ofendido B, desferiu-lhe uma bofetada no rosto;

3.º Como consequência necessária da conduta do arguido, o ofendido sentiu dor no local agredido;

4.º Mais do que a dor da bofetada, B ficou incomodado com a humilhação e constrangimento do ato realizado na frente dos amigos.

(...) 

 

II – Das conclusões (in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/01/2023, proc. n.º 509/20.0GBMTJ.L1-9, rel. Carlos Coutinho, acedido e consultado aqui em 28/01/2023).

1.ª A conduta do menor desrespeitou o pai, desobedecendo-lhe e violando o seu dever previsto no artigo 1878.º, n.º 2 do Código Civil, não respondendo aos seus telefonemas, mantendo, alegadamente, o seu telemóvel no silêncio, depois de ter perdido dois autocarros, sendo certo que já há muito que havia terminado as aulas, não dando conta do seu paradeiro ao seu progenitor;

2.ª A punição foi legítima, porque o arguido é o pai do ofendido e agiu com a intenção de o corrigir, dada a sua atitude desrespeitosa e desobediente. A bofetada foi um castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa do filho e foi também actual;

3.ª De tudo resulta que a punição física que o arguido infligiu ao seu filho, cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do artigo 31.º, n.º 1 e 2 b) do Código Penal (exercício de um direito).


Concordam com esta decisão?

    De referir que o mesmo tribunal, no Acórdão de 17/05/2022 (proc. n.º 1093/20.0T9VFX.L1-5, rel. Anabela Cardoso, acedido e consultado aqui em 28/01/2023) decidiu que:

    «O poder de correcção dos pais sobre os filhos poderá constituir uma causa de exclusão da ilicitude do crime de violência doméstica [ou de ofensa à integridade física, ou coacção ou ameaça, ou qualquer outro tipo de crime que proteja bens jurídicos de que o filho seja titular], se exercido com finalidade exclusivamente educativa, na justa medida em que se mostre ter sido necessário, adequado e proporcional, criterioso e moderado, e inserido no conjunto de poderes-deveres que integram o exercício das responsabilidades parentais, mas o seu exercício deve assumir carácter excepcional.»

    Será que a conduta do arguido, narrada no acórdão de 12/01/2023, integrada no poder de correcção de um pai sobre o filho, cumpre os pressupostos exigidos por este acórdão de 17/05/2022?

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Violência Doméstica - dos números à realidade

Fonte: Google Imagens

    Neste artigo, iremos dedicar a nossa atenção à violência doméstica, enquanto violência física ou psíquica exercida entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre quem conviva ou tenha convivido em condições análogas, crime p. e p. no art.º 152.º n.º 1 al.ªs a) a c) do Código Penal (doravante apenas CP). [1]

[1] Exclui-se, propositadamente, a violência física ou psíquica exercida sobre “pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica” que coabite com o agressor [art.º 152.º n.º 1 al.ª d) do Código Penal, doravante apenas CP] , ou exercida sobre os menores referidos na al.ª e) do mesmo preceito legal.


1.1 - Nota prévia 

    A versão originária deste artigo foi escrita em Abril de 2013. Decorridos cerca de 10 anos, ao consultarmos os indicadores divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça, concluímos que o crime de “violência doméstica cônjuge/análogos” tem-se mantido, com poucas variações [2], no Top 5 dos crimes mais registados pelas autoridades policiais. 


[2] Verificamos que nos anos de 2019 e 2020 houve um aumento significativo do número de registos. Este último ano abrange um período de confinamento derivado da pandemia covid-19, e consequente convivência permanente entre “cônjuges/análogos”.

    Não obstante o elevado número de registos pelas autoridades policiais, constatamos que o número de condenados em processos-crime de “violência doméstica cônjuge/análogos” tem-se mantido sempre abaixo dos 8%. [3]


[3] Não ignoramos, contudo, que, dos crimes registados de “violência doméstica cônjuge/análogos”, alguns possam ter sido arquivados, pelo Ministério Público, após suspensão provisória do processo, cfr. art.ºs 281.º n.º 8 e 282.º n.ºs 3 e 5 do Código de Processo Penal (CPP).

    Mas qual a razão para uma taxa tão reduzida de condenações? 

    Será que todos os casos registados consubstanciam a prática de crime de violência doméstica, subsumindo-se, assim, no tipo de crime do art.º 152.º do CP? A nossa resposta é obviamente negativa.


1.2 - Violência doméstica e normas penais concorrentes

    Os registos divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça patenteiam todos os maus tratos físicos ou psíquicos que chegam ao conhecimento das autoridades policiais, a maioria das vezes por intermédio de denúncia da suposta vítima ou de terceiros.

    Assim, desde que os maus tratos reportados tenham sido perpetrados por cônjuge ou ex-cônjuge, por quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou análoga à dos cônjuges, ou por progenitor de descendente comum em 1.º grau, estamos perante um caso de violência doméstica para efeitos estatísticos.

    No entanto, aquilo que é violência doméstica para efeitos estatísticos poderá não o ser em termos de subsunção criminal.

    Conforme salienta TAIPA DE CARVALHO [4], está em causa, no tipo de crime de violência doméstica, a afectação da saúde física, psíquica e mental da vítima, por intermédio de comportamentos susceptíveis de afectar, de forma intolerável, a sua dignidade e integridade moral como ser humano.

[4] In, Comentário Conimbricense do Código Penal. Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 332.

    Estamos diante de «uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma», ou de “coisificação”, «evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima». [5] [6] 

[5] Vide, Acórdão do TRL, de 21-10-2020, proc. 689/19.7PCRGR.L1-3, rel. Florbela Sebastião e Silva, acedido e consultado aqui em 07/01/2023.
[6] Sublinhado nosso.

    Ainda que haja, nos comportamentos frequentes e sistemáticos, uma maior susceptibilidade de afectação da dignidade pessoal, o legislador, no art.º 152.º n.º 1 do CP, pune também os actos isolados.

    No entanto, se uns e outros tivessem o mesmo valor para efeitos de subsunção, o legislador não teria optado pela previsão: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, …”; bastando-se somente por: “Quem infligir maus tratos físicos e psíquicos, …”; que englobaria actos isolados e reiterados.

    Sendo assim, não havendo reiteração, a acção isolada terá que revelar uma especial intensidade ao nível do desvalor da acção e do resultado, devendo, além da susceptibilidade de lesar a saúde física ou psíquica, revelar-se como incompatível com a dignidade da pessoa por ela visada. [7]

[7] FERNANDES, Plácido Conde. Violência doméstica - Novo quadro penal e processual penal. Revista do CEJ, n.º 8 (especial), 1.º Semestre, 2008, pág. 308.

    Desse modo, v. g.:

 Duas bofetadas na cara, sem que o agressor tenha a intenção de o fazer na presença de terceiros, sujeitando a vítima a vexame e humilhação pública, não integra um crime de violência doméstica, mas de ofensa à integridade física simples p. e. p. pelo art.º 143.º n.º 1 do CP. Acórdão do TRC, de 17/11/2010; 
 
► Também não comete um crime de violência doméstica, mas um crime de ofensa à integridade física simples, aquele que, em data não concretamente apurada, agrediu a mulher com uma cadeira, dando-lhe uma pancada no peito e provocando-lhe uma contusão da parede torácica, um hematoma na região frontal e na mama e escoriações nos lábios e cotovelo. Acórdão do TRE, de 12/09/2011;

Um pontapé na barriga e um empurrão, de onde resultou uma escoriação no joelho, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou profissional, embora violadora da integridade física, não traduz a prática de maus tratos físicos integradores de um crime de violência doméstica. Acórdão do TRP, de 26/05/2010. 

    Podemos então concluir que o crime de violência doméstica está numa relação de concurso aparente com outros tipos de crime [8], nomeadamente, de ofensa à integridade física, ameaça ou de injúria (respectivamente, art.ºs 143.º, 153.º e 181.º do CP).

[8] Per summa capita, existe concurso aparente de normas quando determinada conduta preenche formalmente vários tipos de crimes, sendo que a aplicação de um tipo afasta a aplicação de qualquer outro.

1.2.1 – Reciprocidade ou retorsão proporcional

    Na esteira do expendido no Acórdão do TRL, de 09/05/2018 [9], entendemos também que o crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade, porquanto, estando “perante actos agressivos recíprocos”, perpetrados “na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade”, “o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória não é afectado, não traduzindo essas acções tratamento desumano e degradante”.

[9] Acedido e consultado aqui em 09/01/2022.

Fonte: Google Imagens

 1.3 – As «pseudo-vítimas» de violência doméstica

    Além da crítica já anunciada, os indicadores divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça contemplam todos os maus tratos físicos ou psíquicos que chegam ao conhecimento das autoridades policiais, haja ou não indícios.

    Muitas vezes esses indícios nunca chegam a manifestar-se durante o inquérito, determinando o seu inevitável arquivamento, cfr. art.º 277.º n.º 2 do CPP. Isso sucede, e. g., nos casos em que a violência doméstica é usada como “arma” após uma separação.

    Como sabemos, a separação traz consigo todo um conjunto de emoções, sentimentos e interesses antagónicos. Relações que começaram com amor, muitas das vezes terminam em ódio e desejo de retaliação.

    Esse desejo promove atitudes competitivas e intolerantes no que concerne a matérias como: regulação do exercício das responsabilidades parentais; partilhas de bens, pensão de alimentos, etc.

    Em situações mais extremas, essa retaliação pode consistir na denúncia de maus tratos físicos e/ou psíquicos, envolvendo, por vezes, os próprios filhos como vítimas de abuso sexual, visando a sua tutela ou restrição do convívio e, sobretudo, degradar a reputação e a imagem pública do outro.

    Obviamente que nesta “guerra” não vale tudo. Não há dúvidas de que a violência doméstica existe e, muitas vezes, havendo filhos envolvidos, é ocultada e prolonga-se pela vida toda. Esta sujeição ocorre porque a vítima tem como prioridade preservar a integridade da unidade familiar.

    Geralmente, essas mulheres têm dificuldade em contar a sua história, o seu discurso não é preparado, instruído, surge espontaneamente do impulso do seu sofrimento. Fazem-no, não porque tenham algo a ganhar, mas porque não têm mais nada a perder. Tentaram tudo para modificar a situação, acreditando que aquele(a) que um dia amaram mudaria o seu comportamento, o que não veio a suceder.

    Noutros casos, que não serão tão poucos quanto isso, as denúncias de violência doméstica são falsas. [10] As «pseudo-vítimas» geralmente têm um discurso estruturado, bem adestrado. Sabem bem o que querem e o que devem dizer para o alcançar.

[10] A propósito das denúncias de violência doméstica falsas, determinado Magistrado do Ministério Público avançava com uma percentagem de 90%. Vide pág. 8 do artigo: Violência doméstica e sua criminalização em Portugal: obstáculos à aplicação da lei; escrito por MADALENA DUARTE, Investigadora do Centro de Estudos Sociais e do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

    Perante o exposto, entendemos que o combate à violência doméstica deve continuar a revestir carácter prioritário, não só ao nível da repressão como da sua prevenção. [11] No entanto, deve assegurar-se que a natureza urgente atribuída a todos os processos de violência doméstica (art.º 28.º n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro) [12], de clara inspiração vitimológica, não deixa sem protecção todos aqueles que se veem inocentemente na posição de suspeito/arguido. 

[11] Cfr. art.ºs 3.º al.ª a); 4.º al.ª c); e 5.º al.ª c) da Lei n.º 55/2020, de 27 de Agosto, diploma que aprovou a Lei de Política Criminal - Biénio 2020-2022, e que se mantém em vigor dada a inexistência de sucessora.
[12] A Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, veio estabelecer o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas.

    A pronta reacção, como afirmação de efectividade dos instrumentos penais, não pode por em risco, enquanto direito fundamental, as garantias de defesa do arguido no processo criminal, em especial a presunção da sua inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art.º 32.º n.º 2 da CRP).

    Sendo assim, tendo em consideração que a maioria dos maus tratos físicos e psíquicos relatados ocorrem do domicílio comum, onde não existem testemunhas, importante se torna atribuir às declarações da “vítima” uma ponderada valorização.

    Quanto às falsas denúncias – muitas com risco elevado após o preenchimento da Ficha RVD - 1L –, as consequências perniciosas para quem é por elas visado e o desperdício de meios humanos e materiais mobilizados obrigam a que elas sejam também reprimidas e prevenidas, punindo-se quem a elas recorre, seja por: “falsidade de testemunho”, art.º 360.º do CP; “denúncia caluniosa”, art.º 365.º do CP; ou “simulação de crime”, art.º 366.º do CP.


1.4 – Outras considerações

    Entendemos que os indicadores divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça são ainda exagerados, por consagrarem, como crime violência doméstica, os maus tratos físicos ou psíquicos exercidos independentemente da durabilidade da relação, ou do vasto tempo decorrido desde a sua cessação.

    Está em causa, numa relação conjugal ou de natureza análoga, o respeito, a confiança e a solidariedade. Estes são valores fundamentais que não se adquirem com dois dias de namoro e que, apesar de duradouros, não são intemporais.

    Imagine-se um casal que manteve uma relação análoga à dos cônjuges durante três anos, sem descendentes. Vinte anos após terem terminado essa relação, encontram-se e, por qualquer motivo, envolvem-se em agressões. Subsistirão os valores inerentes à relação, de modo a que se possa subsumir o seu comportamento no crime de violência doméstica, art.º 152.º n.º 1 al.ª b) do CP? A resposta parece ser negativa.


1.5 – Conclusões

   Após as considerações precedentes, não hesitamos em afirmar que os indicadores divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça, relativos ao crime de violência doméstica contra cônjuges ou análogos, são exagerados e excessivamente alarmantes, porquanto e em suma:

► Baseiam-se nos dados que chegam ao conhecimento das autoridades policiais, independentemente da sua gravidade e susceptibilidade de afectar a dignidade pessoal da vítima;

 Incluem as falsas denúncias;

 Não têm em consideração a durabilidade da relação ou o período decorrido desde a sua cessação.


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