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Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Jurisprudência destacada: crime de furto / espaço fechado

Fonte: Google Imagens

    Consideremos o seguinte caso prático fictício:

No dia 14 de Abril de 2024, cerca das 09H00, o António e o Carlos dirigiram-se a um estaleiro de obras, sito no Monte da Caparica, em Almada, com o objectivo de lá entrarem e se apropriarem de todos os objectos de interesse que pudessem transportar.

Para acederem ao interior do estaleiro, escalaram o muro envolvente, com cerca de 2 metros de altura.

António e Carlos conseguiram apropriar-se de vários objectos, num valor total de cerca de 300 euros.

    A conduta do António e do Carlos preenche a tipicidade do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do Código Penal, [1] doravante apenas CP), ou apenas do crime de furto (simples), p. e p. pelo art.º 203.º n.º 1 do CP [2]?

[1] O art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do CP, estabelece que:
Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
(…);
e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas; (…);
é punido com pena de prisão de dois a oito anos”.

Podemos encontrar a definição legal de “arrombamento”, “escalamento” e de “chaves falsas” no art.º 202.º do CP, respectivamente nas suas al.ªs d), e) e f).

[2] Já o art.º 203.º n.º 1, do CP, prescreve que: “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

    No que a esta questão concerne, podemos desde já adiantar que as duas qualificações jurídicas têm sido defendidas pela jurisprudência.

    1.ª ► Furto qualificado

    Há quem entenda que a conjugação alternativa “ou”, que antecede [no art.º 204.º n.º 2 al.ª e) do CP] “outro espaço fechado”, leva a concluir que “qualquer espaço fechado, por si só e desde que devidamente cerrado, integrará a concepção da norma, pelo que a introdução no mesmo, para furtar, qualifica o crime; e ainda mais, se a introdução for efectuada com arrombamento, ou escalamento”. Neste sentido, v. g., o Acórdão do TRP, de 21/02/2018, proc. n.º 784/14.9GBVNG.P1), rel. Cravo Roxo.

    Sendo assim, no nosso caso prático – seguindo este entendimento, com o qual não concordamos –, encontrando-se o estaleiro totalmente rodeado por um muro com cerca de 2 metros de altura, é, de facto, um “espaço fechado”.

    E, tendo o António e o Carlos escalado esse muro e furtado vários objectos (num valor total de cerca de 300 euros), as suas condutas preenchem, em coautoria, o tipo de crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do CP.

    2.ª ► Furto simples

    Seguimos este entendimento, por entendermos que melhor traduz e patenteia a ratio legis, e que se traduz no seguinte:

    Para que um “espaço fechado” funcione como “qualificativa do crime de furto, nos termos do art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do CP), é essencial que este esteja conexionado com uma habitação”, estabelecimento comercial ou industrial. “Se não existir essa relação de dependência ou enlace estrutural, o espaço fechado fica fora do âmbito de proteção da norma”. Neste sentido, inter alia, o Acórdão do TRC, de 11/10/2023, proc. n.º 417/18.4PCCBR.C1, rel. Ana Cardoso. [3]

[3] Conclui-se, neste aresto, que o conceito de “espaço fechado” tem de ser interpretado e conjugado com as definições legais de “penetrar por arrombamento ou escalamento”, pois estas tutelam apenas as “casas” ou “lugares fechados delas dependentes”. Sendo assim, no caso do art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do CP, o “espaço fechado” corresponderá ao lugar fechado dependente de uma habitação, estabelecimento comercial ou industrial.

Com base neste entendimento, o “espaço fechado”, tipicamente agravante, para efeitos do art.º 204.º n.º 1 al.ª f), do CP – por não ter associado o “arrombamento” nem o “escalamento” –, «identifica-se com a noção de “espaço vedado ao público” do artigo 191.º do CP, sendo assim fechado todo o espaço que se encontra vedado ou cercado e que não é de acesso livre».

    A introdução num “espaço fechado”, per se, não representa um dano acrescido que justifique um agravamento tão significativo da moldura penal abstracta (pena de prisão de 2 a 8 anos, em vez de pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, no caso do furto simples).

    No caso do art.º 204.º n.º 2 al.ª e) do CP (furto qualificado), o que verdadeiramente reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e o estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que, para este efeito, incluem os espaços fechados limítrofes, anexos ou a eles agregados.

    “Há um reduto de mais-valias ligado ao espaço físico dedicado à habitação e ao estabelecimento comercial ou industrial e suas dependências contíguas e fechadas que o legislador entendeu ser merecedor de uma tutela acrescida do bem jurídico”. Vide Acórdão do TRP, de 11/07/2012, proc. 774/11.3GAVNF.P1, rel. Artur Oliveira.

    Sendo assim, no nosso caso prático, ainda que o António e o Carlos tenham escalado o muro e furtado vários objectos (num valor total de cerca de 300 euros), tratando-se de um estaleiro de obras, sem qualquer conexão com uma habitação, estabelecimento comercial ou industrial, entendemos que as suas condutas preenchem, em coautoria, apenas o tipo de crime de furto (simples), p. e p. pelo art.º 203.º n.º 1, do CP.

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