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Tradução de Página

Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

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terça-feira, 30 de agosto de 2022

Mordedura de cão perigoso ou potencialmente perigoso por descuido do seu detentor, da qual não tenham resultado lesões graves. Contra-ordenação ou crime?

 

Pit Bull Terrier
Fonte:
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   Para melhor acomodação ao tema proposto, atentemos no seguinte caso fictício, que bem poderia ser real:

No dia 28 de Agosto de 2022, cerca das 17H00, o João caminhava no passeio de uma rua em Almada com um cão de raça "pastor alemão", do qual era detentor.

Não obstante o cão seguir junto do João, com a trela colocada, ao cruzarem-se com um outro cidadão, o cão, repentinamente, saltou em direcção a este, mordendo-o no antebraço direito.

Em consequência de tal agressão, o cidadão sofreu 3 feridas superficiais no referido antebraço, que implicaram, para a cura médico-legal, doze dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho.

    De forma apriorística, podemos afirmar que o João, ao circular com o cão no passeio e ao permitir que este se cruzasse com outras pessoas, possibilitando que as mordesse, não adoptou as cautelas necessárias, exigíveis e previsíveis (v. g., limitando o comprimento da trela), face às circunstâncias que se lhe deparavam.

    Mas, do ponto de vista das consequência jurídicas, onde subsumimos esta omissão de dever de cuidado, cautela e prudência?

    Os factos supra aduzidos conduzem-nos mecanicamente para as normas do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro (diploma que aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos [1] e potencialmente perigosos [2], enquanto animais de companhia).

[1] Nos termos do seu art.º 3.º al.ª b), considera-se “«animal perigoso» qualquer animal que se encontre numa das seguintes condições:
i) Tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa;
ii) Tenha ferido gravemente ou morto um outro animal, fora da esfera de bens imóveis que constituem a propriedade do seu detentor;
iii) Tenha sido declarado, voluntariamente, pelo seu detentor, à junta de freguesia da sua área de residência, que tem um caráter e comportamento agressivos”.

[2] Relativamente a “animal potencialmente perigoso”, nos termos da al.ª c) do mesmo art.º 3.º, é “qualquer animal que, devido às características da espécie, ao comportamento agressivo, ao tamanho ou à potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças previamente definidas como potencialmente perigosas em portaria do membro do Governo responsável pela área da agricultura, bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças referidas naquele diploma regulamentar”.

    Este diploma aplica-se a todos os animais – não só aos cães –, enquanto animais de companhia [3], em função da sua perigosidade, efectiva ou potencial.

[3] Nos termos do art.º 3.º al.ª a), do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, considera-se “«Animal de companhia» qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente na sua residência, para seu entretenimento e companhia”, e desde que não se encontra abrangido “por qualquer proibição quanto à sua detenção” (art.º 4.º). No que concerne a restrições à detenção, destacamos a Portaria n.º 86/2018, de 27 de Março, onde constam várias espécies cujos espécimes vivos são de detenção proibida.

    No nosso caso prático, parece não haver dúvidas de que um cão de raça "pastor alemão” se enquadra na definição de “animal potencialmente perigoso” [art.º 3.º al.ª c) do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro], dadas as suas características, nomeadamente o tamanho e potência da mandíbula, e a possibilidade de causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais. [4]

[4] Repare-se que a lista de cães pertencentes às raças definidas como potencialmente perigosas na Portaria n.º 422/2004, de 24 de Abril (cão de fila brasileiro; dogue argentino; pit bull terrier; rottweiller; staffordshire terrier americano; staffordshire bull terrier; e tosa inu), é meramente exemplificativa, não taxativa, dado o emprego do advérbio "nomeadamente".

    Sendo assim, nos termos do art.º 11.º do sup. cit. Decreto-lei, o João estava obrigado a um dever especial de vigilância sobre o animal, de forma a evitar que este pusesse em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e de outros animais, devendo colocar-lhe, nas deslocações em vias públicas, os meios de contenção adequados (açaimo funcional e trela curta), cfr. art.º 13.º n.º 2.

    Esta inobservância do dever de vigilância ou cuidado, com consequente ofensa do corpo ou saúde de outra pessoa, encontra-se tipificada no Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro. Assim, nos termos do seu art.º 33.º, com epígrafe “ofensas à integridade física negligentes”:

Quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves [5] à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.” (sublinhado nosso)

[5] Nos termos do art.º 144.º do Código Penal (CP), estamos perante uma ofensa grave quando ela atinge "o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a:
a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente;
b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem;
c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou
d) Provocar-lhe perigo para a vida;
é punido com pena de prisão de dois a dez anos".

Tosa Inu
Fonte:
Google Imagens

    Não obstante a semelhança de conteúdo entre este art.º 33.º e a conjugação dos n.ºs 1 e 3 do art.º 148.º do Código Penal, o legislador pretendeu tornar público o crime de ofensas à integridade física (graves) negligentes, afastando, assim, o regime semipúblico decorrente da aplicação do art.º 148.º n.ºs 1, 3 e 4 do CP.

    No caso de “a não observância de deveres de cuidado ou vigilância (…) der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves” [6], estaremos perante uma contra-ordenação económica grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contra-ordenações Económicas (RJCE), cfr. art.º 38.º n.º 1 al.ª r) do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro. [7]

[6] Sublinhado nosso. 
[7] No caso de se tratar de pessoa singular, nos termos do art.º 18.º al.ª b) i) do RJCE, aprovado pelo Decreto-lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, essa contra-ordenação grave corresponde a uma coima entre 650 e 1500 euros.

    Então, nas circunstâncias anunciadas, a conduta do João subsumir-se-ia, apenas, no tipo contra-ordenacional, p. e p. no art.º 38.º n.º 1 al.ª r) do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro? [8]

[8] Em contexto análogo, assim decidiram, et. al: o TRP, no seu acórdão de 24/09/2020, proc. 96/18.6GAVCD-A.P1, rel. Horácio Pinto, acedido e consultado aqui em 28/08/2022; e o TRL, no seu aresto de 11/07/2018, proc. 73/16.4PHLRS-3, rel. Adelina Oliveira, acedido e consultado aqui em 28/08/2022.

    Não obstante a literalidade dos preceitos, entendemos que não, vejamos porquê.

    Suponhamos que, no nosso caso prático, o João, em vez de caminhar com o seu cão de raça "pastor alemão", caminhava com um “Yorkshire Terrier”, e que, em consequência da agressão, o cidadão sofreu 3 feridas superficiais na região crural anterior da perna direita, sem afectação da capacidade para o trabalho.

    Perante as definições de “animal perigoso” e “animal potencialmente perigoso” (constantes de notas sup. cit.), e com os parcos dados que possuímos, dificilmente compreenderíamos que a um cão de raça “Yorkshire Terrier” fosse aplicado o regime do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.

    Sendo assim, neste caso, havendo queixa do ofendido, a conduta negligente do João subsumir-se-ia, em abstracto, no tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º n.ºs 1 e 4 do CP [9], cjg. com art.ºs 13 e 15.º do mesmo diploma legal.

[9] Nos termos do art.º 148.º n.ºs 1 e 4 do CP: “Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”; e n.º 4: “O procedimento criminal depende de queixa.”

    Será, então, que o legislador pretendeu um regime menos gravoso, estando em causa ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves, quando perpetradas por um “animal perigoso” e “animal potencialmente perigoso”, transformando em contra-ordenação o que antes constituía crime?[10]  Parece-nos que não…

[10] Note-se que, antes da entrada em vigor do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, era entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência de que as lesões à integridade física de pessoas, causadas por animais devido a negligência do seu detentor, integravam a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º do CP. Vide, v. g., a este propósito, a decisão proferida pelo TRL, de 11/04/2007, proc. 8059/2006-3, rel. Telo Lucas, acedida e consultada aqui em 28/08/2022.

    Para mais, quando o próprio legislador, na exposição de motivos do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, admite que:

«Pela experiência adquirida com a aplicação daqueles normativos legais conclui-se, no entanto, que a punição como contra-ordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime

    Então como explicar o tipo contra-ordenacional do art.º 38.º n.º 1 al.ª r) do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro?

Staffordshire Terrier Americano
Fonte: Google Imagens

    Com a criação de um tipo especial de ofensa à integridade física negligente, do qual resultem lesões graves (art.º 33.º do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro), e ao conferir-lhe natureza pública, o legislador pretendeu “reforçar a resposta punitiva existente, visando alcançar uma maior confiança da comunidade na proteção dos bens jurídicos protegidos”, sem revogar “expressamente nenhuma norma do Código Penal”. [11]

[11] Assim, Plácido Conde Fernandes (In, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Org. Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, 1.ª Edição, Univ. Católica, 2010, pags. 306 e 319).

    Este novo tipo de crime implica um esforço interpretativo no sentido de harmonizar o sistema jurídico, devendo considerar-se, por conseguinte, além do enunciado linguístico, também o pensamento legislativo (espirito e sentido), e ainda o princípio de que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presume que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, cfr. art.º 9.º n.º 3 do Código Civil.

    Deste modo, após a entrada em vigor do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro:

As ofensas à integridade física negligentes, das quais resultem ofensas graves, passaram a ser punidas pelo seu art.º 33.º (e não pelo art.º 148.º n.ºs 1 e 3 do CP, por força do princípio da especialidade segundo o qual "lex specialis derogat legi generali";

As ofensas à integridade física negligentes, das quais não resultem ofensas graves:

Havendo queixa do ofendido, continuaram a ser punidas pelo art.º 148.º n.º 1 do CP, cjg. com art.ºs 13 e 15.º do mesmo diploma legal. Repare-se que, neste caso, nos termos do art.º 36.º n.º 3 do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, a contra-ordenação prevista no seu art.º 38.º n.º 1 al.ª r), é consumida pelo crime previsto no art.º 148.º n.º 1 do CP (o qual esgota o desvalor de toda a conduta negligente), segundo o princípio “lex consumens derogat consuptae”. [12] [13]
 
[12] Perante esta manifestação do princípio da consumpção (ou da absorção), e na esteira do expendido no Acórdão do TRL, de 03/10/2007 (proc. 4223/2007-3, rel. Moraes da Rocha, acedido e consultado aqui em 28/08/2022), “cremos que a vontade e a intenção da lei são, seguramente, pela natureza das coisas, que a sanção correspondente a uma conduta punível a título criminal não represente para o infractor um sacrifício muito menor do que o resultante de uma conduta contra-ordenacional”.
    Assim, sendo o crime do art.º 148.º n.º 1 do CP punido com “pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”, e, entendendo-se que a pena de multa realiza “de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (art.º 70.º do CP), esta deverá ser fixada, se possível (atendendo aos critérios estabelecidos nos art.ºs 47.º n.ºs 1 e 2 e 71.º n.ºs 1 e 2 do CP), de modo a salvaguardar a congruência do sistema, em valor não inferior ao valor mínimo da coima prevista no art.º 38.º n.º 1 al.ª r) do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, a saber: 650 euros [cfr. art.º 18.º al.ª b) i) do RJCE, aprovado pelo Decreto-lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro].

[13] Este princípio encontra-se também previsto no art.º 27.º do RJCE (sup. cit.). Como referimos, constituindo, a mesma infracção, crime (havendo exercício do direito de queixa) e contra-ordenação, o agente é punido apenas como crime, podendo, contudo, ser-lhe aplicadas as sanções acessórias mais adequadas ao caso concreto, estejam elas previstas para a infracção criminal ou para a infracção contra-ordenacional (cfr. art.º 36.º n.º 3 do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro).

Não havendo queixa do ofendido, passaram a ser punidas pelo art.º 38.º n.º 1 al.ª r) do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, não operando, aqui, o princípio referido no ponto anterior. [14]

[14] Neste caso, o legislador entendeu que, ainda que o ofendido abdique, por razões de circunstância ou mera opção pessoal, do exercício do direito de queixa, há necessidade de uma resposta punitiva de âmbito contra-ordenacional. Este entendimento é perfilhado, também, et. al., por Plácido Conde Fernandes, in ob. sup. cit, pág. 318. Neste sentido, também, v. g., os seguintes acórdãos: do TRL, de 29/03/2022, proc. 322/18.4PCSXL.L1-5, rel. Jorge Gonçalves, acedido e consultado aqui em 28/08/2022; e do TRG, de 10/02/2020, proc. 114/17.8GAVRM.G1, rel. Armando Azevedo, acedido e consultado aqui em 28/08/2022.
    Perante soluções opostas apresentadas por tribunais na relação, relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, surpreende-nos o facto de ainda não ter sido interposto recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art.º 437.º e sgts. do CPP.


Cão de Fila Brasileiro
Fonte: Google Imagens

    Ex positis, no nosso caso prático:

Havendo queixa do ofendido, a conduta negligente do João subsumir-se-ia, em abstracto, no tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º n.ºs 1 e 4 do CP, cjg. com art.ºs 13 e 15.º do mesmo diploma legal.

Não havendo queixa do ofendido, ainda assim essa conduta subsumir-se-ia na contra-ordenação prevista no art.º 38.º n.º 1 al.ª r) do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.

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1 comentário:

  1. Obrigado pelo esclarecimento.
    Era uma dúvida que tinha já há algum tempo.

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