I – Introdução
Como sabemos, nos últimos anos, Portugal assistiu a um aumento da visibilidade mediática e social das ocupações de imóveis.
Este fenómeno resultou de uma combinação complexa de factores: a crise habitacional, o aumento dos preços dos imóveis e do arrendamento, a escassez de oferta acessível e o prolongamento de situações de abandono ou desuso de propriedades.
A inexistência de mecanismos legais suficientemente céleres para assegurar a imediata restituição dos imóveis aos seus proprietários, levou ao surgimento de movimentos autodenominados “antiocupas”.
Porém, a expansão deste tipo de movimentos constitui um risco significativo para o Estado de Direito: promovem a ideia de justiça privada, confundem casos pontuais com um fenómeno generalizado e corroem a confiança nos mecanismos institucionais de proteção da propriedade e tutela dos direitos fundamentais.
II – Chegou a solução legal para "combater" as ocupações?
Hoje (dia 25 de Novembro de 2025) entrou em vigor a Lei n.º 67/2025, de 24 de Novembro, que, segundo o seu sumário, procura proteger o direito de propriedade, através do reforço da tutela penal dos imóveis objeto de ocupação ilegal, alterando o art.º 215.º Código Penal (CP) [1] e os art.ºs 200.º e 204.º Código de Processo Penal (CPP) [2].
[1] O art.º 215.º do CP, com epígrafe “Usurpação de coisa imóvel”, tinha, até ontem, a seguinte redacção:
“1 - Quem, por meio de violência ou ameaça grave, invadir ou ocupar coisa imóvel alheia, com intenção de exercer direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados por lei, sentença ou acto administrativo, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber em atenção ao meio utilizado.
2 - A pena prevista no número anterior é aplicável a quem, pelos meios indicados no número anterior, desviar ou represar águas, sem que a isso tenha direito, com intenção de alcançar, para si ou para outra pessoa, benefício ilegítimo.
3 - O procedimento criminal depende de queixa”.
A partir de hoje, passa a dispor o seguinte:
“1 – Quem invadir ou ocupar coisa imóvel alheia, com intenção de exercer direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados por lei, sentença ou ato administrativo, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – Se os factos descritos no número anterior forem exercidos por meio de violência ou ameaça grave ou incidirem sobre imóvel destinado à habitação própria e permanente, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
3 – Quem praticar os atos descritos nos números anteriores atuando profissionalmente ou com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.
4 – A pena prevista no n.º 1 é aplicável a quem, por meio de violência ou ameaça grave, desviar ou represar águas, sem que a isso tenha direito, com intenção de alcançar, para si ou para outra pessoa, benefício ilegítimo.
5 – A tentativa é punível.
6 – O procedimento criminal depende de queixa”.
[2] Relativamente ao art.º 200.º do CPP, com epígrafe “Proibição e imposição de condutas”, foram acrescentados os n.ºs 8 e 9, com a seguinte redacção:
“8 – Se houver fortes indícios da prática dos factos descritos nos n.ºs 1 a 3 do artigo 215.º do Código Penal e se estiver fortemente indiciada a titularidade do imóvel por parte do queixoso, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de restituição imediata do imóvel ao respetivo titular.
9 – Quando os imóveis integrem o parque habitacional público e estiverem a ser utilizados para fins habitacionais, o órgão competente para apresentar a queixa por crime de usurpação de coisa imóvel analisa as condições socioeconómicas dos visados e, quando for o caso, ativa as respostas sociais ou habitacionais adequadas e previstas na lei e regulamentos aplicáveis, podendo prescindir da apresentação de queixa quando tiver lugar a desocupação voluntária do imóvel.”
No art.º 204.º n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP), relativo aos requisitos gerais das medidas de coacção, foi acrescentado o seguinte:
“Nenhuma medida de coação, à exceção das previstas no artigo 196.º e no n.º 8 do artigo 200.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:”
Aplaude-se a alteração
introduzida no crime de usurpação de coisa imóvel, em especial no art.º 215.º n.º 1, do CP, que deixa de configurar um crime de execução vinculada, por já
não exigir, para a sua verificação típica, a atuação mediante violência ou
ameaça grave. [3]
[3] Na nossa opinião, perdeu-se a oportunidade de clarificar uma divergência que subsiste na doutrina e na jurisprudência, a de saber se a violência e/ou ameaça grave se reporta exclusivamente a pessoas ou se pode, igualmente, incidir sobre coisas.
Sendo assim, aquando da sua
entrada em vigor, o tipo legal encontrar-se-á preenchido mediante a “simples”
invasão ou ocupação de coisa imóvel alheia. [4]
[4] A propósito desta nova redação, Filipe Pimenta, Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, salientou que ela poderá fazer incidir responsabilidade penal sobre situações que, no âmbito do Direito Civil, são legalmente permitidas, designadamente no instituto da posse e na eventual aquisição de imóveis alheios por usucapião ou por acessão imobiliária industrial.
A invasão ou a ocupação de coisa imóvel alheia, quando praticada mediante recurso à violência ou à ameaça grave, passa a integrar o n.º 2, sendo punível com pena mais grave (prisão até 3 anos ou pena de multa).
Relativamente ao art.º 200.º n.º 8 do CPP, ao conferir ao juiz o poder-dever de impor ao arguido a obrigação de
restituição imediata do imóvel ao respetivo titular, o legislador assegura uma
solução dotada de maior celeridade face aos mecanismos cíveis existentes,
nomeadamente o procedimento cautelar comum [art.ºs 362.º e sgts. do Código de
Processo Civil (CPC)] ou a providência cautelar de restituição provisória da
posse (no caso de esbulho violento [4], cfr. art.º 377.º a 379.º do CPC).
[4] Numa definição elementar, o esbulho consiste na privação da posse de um bem por acto de terceiro, contra a vontade do possuidor.
III – Mas será que esta alteração legislativa vai resolver de facto todo o problema das ocupações?
Constatámos, em diversas publicações da imprensa escrita, que, após múltiplas ocupações, a GNR e a PSP afirmaram não lhes ser possível intervir, uma vez que a lei apenas lhes conferia competência para proceder à detenção em flagrante delito. Tal situação não se verificava na maioria dos casos, dado tratar-se de segundas habitações, cujos proprietários só tomavam conhecimento após alguns dias.
Tal sucedia porque existiam (e continuarão a existir, uma vez que a nova redação não altera este ponto) dois entendimentos quanto à consumação do crime de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art.º 215.º n.º 1, do CP:
► É um crime instantâneo (que pode ter efeitos permanentes).
O crime instantâneo é aquele cuja consumação se exaure num único momento, ainda que os seus efeitos possam perdurar no tempo. [5]
[5] É o caso, por exemplo (e a doutrina e a jurisprudência aqui são unânimes) do crime de furto (art.º 203.º n.º 1, do CP), cuja consumação se verifica no momento da subtração, ainda que os efeitos materiais do ilícito se prolonguem enquanto subsistir a privação da coisa.
Para os defensores desta
classificação, o crime de usurpação de coisa imóvel consuma-se com a invasão ou
com o início da ocupação (no caso de ocupação sem invasão [6]), por meio de violência
ou ameaça grave [que, com a nova redacção, deixa de ser necessária para
preenchimento do tipo]. [7]
[6] Situações em que o agente já está dentro do imóvel ou entrou nele pacificamente.
[7] Como exemplo, o acórdão do TRG, de 05 de Junho de 2024, proc. 268/20.6GAFAF.G1, rel. Paulo Cunha, consultado aqui no dia 25 de Novembro de 2025.
Tratando-se de crime de consumação instantânea, a detenção deve observar as regras do flagrante delito [art.ºs 255.º n.º 1 al.ª a) e 256.º n.ºs 1 e 2, do CPP].
Sendo assim, considera-se flagrante delito o crime que está a ser cometido, ou que acabou de o ser, ou quando, logo após o seu cometimento, o seu agente é perseguido por qualquer pessoa (polícia ou não) ou encontrado com objetos ou sinais que indiquem de forma inequívoca que acabou de o cometer ou nele participar.
► É um crime permanente
O crime permanente, por sua vez, é aquele em que a conduta típica produz uma situação ilícita que se prolonga no tempo, e cuja permanência depende da vontade do agente, que a pode fazer cessar a qualquer momento (há aqui uma renovação permanente do facto). [8]
[8] O sequestro, previsto no art.º 158.º n.º 1, do CP, constitui um exemplo paradigmático de crime permanente, cuja consumação se prolonga enquanto perdurar a privação da liberdade.
Para os defensores desta classificação, sendo a usurpação de coisa imóvel um crime permanente, a consumação prolonga-se enquanto perdurar a ocupação, cessando no dia em que esta termine. [9]
[9] O acórdão do TRC, de 10 de Maio de 2006, proc. n.º 1010/06, rel. Gabriel Catarino (consultado aqui em 25 de Novembro de 2025) decidiu que o crime de usurpação de coisa imóvel é um crime permanente ou duradouro, embora, neste caso, a fundamentação pareça ajustar-se melhor à noção de crime instantâneo de efeitos permanentes.
Sendo assim, nos termos do art.º 256.º n.º 3, do CPP, o flagrante delito persiste “enquanto se mantiverem sinais que mostrem claramente que o crime está a ser cometido e o agente está nele a participar”.
Na nossa opinião, o crime de usurpação de coisa imóvel é também um crime permanente.
Na sua nova redacção, são elementos essenciais do tipo de crime: a invasão ou ocupação de coisa imóvel alheia; e a intenção de exercer direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados por lei, sentença ou ato administrativo.
Invadir é ocupar pela força ou entrar hostilmente na coisa imóvel. Ocupar é tomar ou apossar-se dela.
Sendo assim, parece-nos que o
crime de usurpação de coisa imóvel consuma-se no momento em que a pessoa invade
a coisa imóvel ou dá início à sua ocupação com a intenção ali descrita. Contudo, evolui para um crime
permanente com a efectiva e continuada ocupação. [10]
[10] O mesmo sucede com a “permanência” nos crimes de violação de domicílio (art.º 190.º n.º 1 do CP) e de introdução em lugar vedado ao público (art.º 191.º do CP). Relativamente a este último, sugerimos a leitura do acórdão do TRL, de 12 de Junho de 2025, proc. n.º 1308/22.0GAMTA.L1-9, rel. Ana Guedes, consultado aqui em 25 de Novembro de 2025.
Mas quais são as principais diferenças entre o crime de furto (art.º 203 n.º 1, do CP) e o crime de usurpação de coisa imóvel (art.º 215.º n.º 1, do CP) para concluirmos que o primeiro constitui um crime instantâneo, ainda que de efeitos permanentes, e o segundo configura um crime permanente?
Em primeiro lugar, no crime de furto, o agente não controla a continuidade dos efeitos, ou seja, uma vez praticada a subtracção (crime consumado), o agente não pode prolongar ou interromper os efeitos do crime. [11]
[11] Pode, contudo, após o crime de furto consumado, haver restituição ou reparação nos termos do art.º 206.º do CP.
Já no crime de usurpação de coisa imóvel, o agente do crime mantém um domínio contínuo sobre a situação ilícita (a ocupação). Sendo assim, a consumação renova-se a cada momento, persistindo enquanto perdurar o estado antijurídico. [12]
[12] Numa linguagem mais coloquial, dir-se-ia que o crime está, por assim dizer, sempre a ser novamente praticado, de forma contínua.
Quanto aos efeitos, enquanto no
crime de furto a perda patrimonial é mero efeito da subtração (não prolongando
a consumação), no crime de usurpação de coisa imóvel a ocupação continuada e a
exclusão do legítimo titular constituem a própria conduta criminosa.
IV – Considerações finais
Para aqueles que consideram que o crime de usurpação de coisa imóvel era (e continuará a ser) um crime instantâneo com efeitos permanentes, o problema da detenção em flagrante delito persistirá.
E, não havendo detenção em
flagrante delito, não é possível impor imediatamente a nova medida de coação (a
obrigação de restituição imediata do imóvel ao respetivo titular),
comprometendo-se a celeridade almejada.
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