Livros novos e descontinuados ao melhor preço do mercado: ↓ ↓

Tradução de Página

Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um advogado.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Carros que espiam: o conflito entre videovigilância e direito à imagem

 


    Para melhor orientar o leitor ao longo do percurso intelectual proposto por este texto, considerou-se oportuno iniciar a obra com um breve índice. Este índice não se limita a servir de guia, mas constitui um convite à reflexão estruturada, garantindo que cada argumento e consideração encontre o seu lugar no panorama geral da análise. 

1 – Introdução.

2 – Enquadramento jurídico. 

2.1 – Imagem enquanto dado pessoal. 

2.1.1 – Os sistemas de videovigilância instalados em veículos são abrangidos pelo disposto no art.º 19.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto? 

2.1.2 – Uma câmara de videovigilância que capte exclusivamente o interior de um veículo enquadra-se na “isenção doméstica”, não lhe sendo aplicável o art.º 19.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto? 

2.1.3 – O art.º 19.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, é igualmente aplicável aos veículos dotados, de origem, de sistemas de videovigilância integrados? 

2.1.4 – Existência de “interesse legítimo” para a instalação/utilização de sistema de videovigilância em veículo. 

2.1.4.1 – E se houver oposição de terceiros? 

3 – Admissibilidade de gravações obtidas ilegalmente como prova em processo penal

 

1 – Introdução 

    Nos últimos anos, tem-se verificado um aumento significativo no uso de câmaras instaladas em veículos [1], tanto por iniciativa dos condutores como por parte dos próprios fabricantes. 

[1] Por “veículo” entendemos qualquer meio de transporte capaz de circular na via pública, motorizado ou não, destinado ao transporte de pessoas, animais ou mercadorias, ou a fins de trabalho especializado. 

    Tal uso levanta, contudo, questões relevantes de ordem jurídica e ética, designadamente quanto à proteção de dados pessoais, à admissibilidade das gravações como meio de prova e ao equilíbrio entre o direito à segurança e os direitos à imagem e à palavra. 

    Estamos, pois, perante uma realidade em que a tecnologia não apenas redefine hábitos sociais, mas também transforma profundamente a experiência quotidiana. Essa transformação, embora subtil, tem repercussões significativas na esfera das liberdades individuais, frequentemente comprimidas em nome da segurança pública e da necessidade de maior vigilância e controlo social.

 

2 – Enquadramento jurídico 

    A utilização de câmaras em veículos pode suscitar potenciais colisões com os direitos de personalidade de terceiros, nomeadamente com os direitos à imagem e à palavra, ambos dotados de dignidade e protecção constitucional, art.º 26.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

    Em termos infraconstitucionais, os direitos à imagem e à palavra gozam de tutela penal. No que respeita ao primeiro, dispõe o art.º 199.º n.º 1, do Código Penal (CP) que é punível [com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias] a conduta de quem, sem consentimento: 

a) Grava palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou

b) Utiliza ou permite que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas. 

    Quanto ao direito à imagem, nos termos do art.º 199.º n.º 2, do CP, é punível a conduta de quem, contra a vontade (expressa ou presumida): 

a) Fotografa ou filma outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou

b) Utiliza ou permite que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos. 

    Este art.º 199.º do CP deve ser, contudo, conjugado com o art.º 79.º n.º 2, do Código Civil (CC), que estabelece o seguinte: 

Não é necessário o consentimento da pessoa retratada” (quer para a recolha, quer para a utilização da sua imagem) “quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem” (apenas a recolha da imagem, não a sua utilização) “vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”[2[3[4] 

[2] Sublinhado e acrescentos entre parêntesis nossos.

[3] Os direitos à palavra e à imagem são direitos análogos, sendo, por isso, também aplicável, àquele, o art.º 79.º n.º 2, do CC, com as devidas adaptações.

[4] Sobre o conteúdo do art.º 79.º n.º 2, do CC, sugerimos a leitura do nosso artigo denominado: “A Polícia e o Direito à Imagem/Palavra”. 

    Sendo assim, por exemplo, nos casos em que o foco central da gravação recai sobre um lugar público, sobre um facto de interesse público ou sobre um acontecimento que decorre publicamente (e não sobre a imagem ou a palavra de alguém), em princípio não se encontra preenchido o tipo de crime previsto no art.º 199.º n.º 2 al.ª a), do CP (relativo à recolha da imagem), mas tal não significa que não se possa preencher posteriormente o tipo de crime previsto na al.ª b) do mesmo n.º 2 (referente à utilização dessa imagem). [5[6]

[5] Recordamos, mais uma vez, que a segunda parte do art.º 79.º n.º 2, do CC, diz respeito apenas à reprodução da imagem e não à sua utilização posterior. 

[6] Sobre esta atipicidade, sugerimos: Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999, págs. 833 e 834.

 

2.1  Imagem enquanto dado pessoal

    Apesar da conclusão alcançada na secção anterior, importa ter presente que a imagem de uma pessoa é um dado pessoal, na medida em que permite identificar ou tornar identificável uma pessoa singular. [7] 

[7] Podemos encontrar a definição de “dados pessoais” no art.º 4.º 1) do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) - Regulamento (UE) do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016. 

    O mesmo ocorre relativamente à palavra de uma pessoa e à imagem de certos objetos, cuja informação é susceptível de ser atribuída a um indivíduo, como sucede, por exemplo, no caso de uma matrícula de veículo, que permite identificar o respetivo proprietário. 

    No domínio da proteção de dados em território nacional, a Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais), veio assegurar a harmonização do quadro jurídico nacional com o RGPD (referido na nota n.º [7]). 

    Esta Lei, no seu art.º 19.º, epigrafado “Videovigilância”, estabelece o seguinte: 

1 - Sem prejuízo das disposições legais específicas que imponham a sua utilização, nomeadamente por razões de segurança pública, os sistemas de videovigilância cuja finalidade seja a proteção de pessoas e bens asseguram os requisitos previstos no artigo 31.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio [8], com os limites definidos no número seguinte.

2 - As câmaras não podem incidir sobre:

a) Vias públicas, propriedades limítrofes ou outros locais que não sejam do domínio exclusivo do responsável (…);

(…)

4 - Nos casos em que é admitida a videovigilância, é proibida a captação de som, exceto no período em que as instalações vigiadas estejam encerradas ou mediante autorização prévia da CNPD.» [9]

 

[8] Estes requisitos são: 

As gravações de imagem obtidas pelos sistemas videovigilância devem ser conservadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados desde a respetiva captação, findo o qual são destruídas, no prazo máximo de 48 horas;

Todas as pessoas que tenham acesso às gravações devem sobre as mesmas guardar sigilo, sob pena de procedimento criminal;

É proibida a cessão ou cópia das gravações obtidas, só podendo ser utilizadas nos termos da legislação processual penal;

Nos locais objeto de vigilância com recurso a câmaras de vídeo é obrigatória a afixação, em local bem visível, do seguinte:

-- A menção “Para sua proteção, este local é objeto de videovigilância”;

-- Quem é o responsável pelo tratamento dos dados recolhidos (perante quem os direitos de acesso e retificação podem ser exercidos).

Deve também existir simbologia adequada, nos termos definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área da administração interna. 

[9] Sublinhado e negrito nossos. 

    A violação do disposto neste art.º 19.º constitui uma contraordenação grave, punida com uma coima de 500 a 250.000 euros, cfr. art.º 38.º n.º 1 al.ª u) e n.º 2 al.ª c), da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto. 

    Convém ainda ter sempre presente que o RGPD, no seu art.º 5.º n.º 1 al.ª c), consagra princípio da “minimização dos dados”, significando que, antes de instalar um sistema de videovigilância, o responsável pelo tratamento de dados deve sempre examinar criticamente se esta medida é, em primeiro lugar, adequada para atingir o objetivo desejado (neste caso, a proteção de pessoas e bens) e, em segundo lugar, adequada e necessária às respetivas finalidades. [10]

[10] Para além deste princípio, existe também o princípio da “limitação das finalidades” [art.º 5.º n.º 1 al.ª b) do RGPD], segundo o qual os dados recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas não podem ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades (v. g., publicação nas redes sociais ou disponibilização a órgãos de comunicação social em contrapartida de qualquer vantagem económica).

 

2.1.1 – Os sistemas de videovigilância instalados em veículos são abrangidos pelo disposto no art.º 19.º, da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto? 

    Algumas pessoas defendem que não pelos seguintes motivos: 

    O RGPD “não se aplica ao tratamento de dados pessoais (…) efetuado por uma pessoa singular no exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas” [art.º 2.º n.º 2 al.ª c), do RGPD]. 

    Vindo a Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, assegurar a execução, na ordem jurídica interna, do RGPD, também ela não é aplicável ao tratamento de dados pessoais referidos no parágrafo anterior. 

    Perante esta exclusão, essas pessoas entendem que os sistemas de videovigilância instalados nos veículos podem registar todo o conteúdo captável à sua frente, desde que não se proceda a qualquer utilização das imagens ou, no caso de gravação de vídeos, estas se destinem exclusivamente ao uso do operador. 

    Não partilhamos desta opinião. Passamos a expor as razões. 

    A propósito destas matérias, o Comité Europeu para a Protecção de Dados, adoptou, em 29 de Janeiro de 2020, as Diretrizes 3/2019 sobre tratamento de dados pessoais através de dispositivos de vídeo. 

    No que concerne ao “exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas”, é referido, na sua página 8 (secção 2.3 – 12) que, no contexto da videovigilância, deve ser interpretado de forma restrita. 

    Assim, “de acordo com o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) [11], a chamada «isenção doméstica» deve «ser interpretada como tendo unicamente por objeto as atividades que se inserem no âmbito da vida privada ou familiar dos particulares”. 

[11] Acórdão de 6 de Novembro de 2003, Bodil Lindqvist, C-101/01, EU:C:2003:596, n.º 47. 

    Ainda segundo o TJUE [12], “um sistema de videovigilância que envolve o registo e a conservação constantes de dados pessoais e se estende, «ainda que parcialmente, ao espaço público e, por esse motivo, se dirige para fora da esfera privada da pessoa que procede ao tratamento de dados por esse meio, não pode ser considerada uma atividade exclusivamente “pessoal ou doméstica”, na aceção do artigo 3.º, n.º 2, segundo travessão, da Diretiva 95/46»”. [13] [14]

[12] Acórdão de 11 de Dezembro de 2014, František Ryneš contra Úřad pro ochranu osobních údajů, C-212/13, EU:C:2014:2428, n.º 33. 

[13] Sublinhado nosso.

[14] A Diretiva 95/46/CE foi revogada pelo Regulamento (UE) 2016/679, actual RGPD. 

    A propósito das câmaras de vídeo integradas nos automóveis para prestar assistência de estacionamento, podemos ler também, nas Diretrizes 3/2019, que se elas forem construídas ou adaptadas de forma a não recolherem quaisquer informações relativas a pessoas singulares (como matrículas ou informações que permitam identificar transeuntes), o RGPD não se aplica. 

    Face ao exposto, pela aplicação do art.º 19.º, da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, num sistema de videovigilância, instalado num veículo, e que envolve o registo e a conservação de imagens [15], as câmaras não podem incidir sobre “vias públicas, propriedades limítrofes ou outros locais que não sejam do domínio exclusivo do responsável”, sob pena de uma coima de 500 a 250.000 euros. 

[15] Referimo-nos apenas à imagem, pois a captação de som é, em regra, proibida em qualquer local, cfr. art.º 19.º n.º 4, da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto.

 

2.1.2 – Uma câmara de videovigilância que capte exclusivamente o interior de um veículo enquadra-se na “isenção doméstica”, não lhe sendo aplicável o art.º 19.º, da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto? [16]

[16] Devido à transparência dos vidros, para esta delimitação do campo visual, pode-se usar, v. g., mascaramento por software. 

    À luz das conclusões constantes nas Diretrizes 3/2019 [página 8, secção 2.3 - 13], os dispositivos de vídeo operados no interior de um veículo podem enquadrar-se na “isenção doméstica”, dependendo de diversos factores que devem ser analisados em conjunto. 

    Assim, além dos elementos supra mencionados (identificados pelos acórdãos do TJUE), o utilizador da videovigilância dentro de um veículo tem de verificar se: 

possui algum tipo de relação pessoal com o titular dos dados;

se a vigilância tem algum possível impacto adverso nesses titulares; ou

se a escala ou frequência da vigilância sugere algum tipo de atividade profissional da sua parte. [17] 

[17] No caso de veículos destinados ao transporte individual e remunerado de passageiros (v. g., TVDE), a utilização de um sistema de videovigilância no seu interior deve obedecer ao disposto no art.º 19.º da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto (vide nota n.º [8]), com as necessárias adaptações.

 

2.1.3 – O art.º 19.º, da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, é igualmente aplicável aos veículos dotados, de origem, de sistemas de videovigilância integrados? 

    A resposta não pode deixar de ser afirmativa.     

    Peguemos no caso dos veículos automóveis da marca Tesla [18], que vêm equipados de origem com um conjunto de câmaras (internas e externas) utilizadas em 2 modos de gravação: “dashcam” [19] e “sentinela” [20]

[18] O modelo 3, de 2024, possui sete (7) câmaras de videovigilância exteriores e uma interior. As câmaras frontais cobrem uma distância aproximada entre 60 a 250 metros; as câmaras laterais cobrem uma distância aproximada entre 60 a 80 metros; e a câmara traseira cobre uma distância aproximada entre 50 a 100 metros.






[19] O modo “dashcam” é activado pelo utilizador e permite registar as imediações do veículo (ver o alcance na nota anterior) durante a condução. As imagens de vídeo são gravadas numa pen USB. Nos manuais de proprietário, podemos ler que, caso o utilizador opte pela gravação manual, a “dashcam” guarda a gravação dos últimos 10 minutos. 

[20] O modo “sentinela” é também activado pelo utilizador e permite que as câmaras e os sensores (se existentes) do veículo permaneçam ativados e prontos a registar quaisquer atividades suspeitas (os manuais de utilizador não nos esclarecem que “actividades suspeitas” são essas…) em redor do veículo quando está trancado e na posição de estacionamento. 

    Como é do conhecimento público, a Tesla, Inc. foi condenada pelos tribunais de alguns Estados-membros da União Europeia por não ter advertido os adquirentes dos seus veículos de que, mesmo no modo “sentinela” (considerado menos intrusivo do que o modo “dashcam”), a utilização daquele sistema poderia configurar violação das normas de proteção de dados pessoais. 

    Presentemente, aquela empresa americana garante que, para efeitos de conformidade com os requisitos de privacidade da UE, o modo “sentinela” grava apenas até 10 minutos de cada vez e que as filmagens só são guardadas quando o automóvel ou a câmara detetar um evento de segurança[21] 

[21] Parece-nos que a Tesla, Inc. pretende invocar o “interesse legítimo” para a utilização do sistema de videovigilância no veículo, questão que iremos abordar de seguida. 

    Não é clarificado o que a Tesla, Inc. entende por “evento de segurança”. Por exemplo, constitui evento de segurança a mera aproximação de uma pessoa a menos de um metro do veículo? 

    Perante as decisões judiciais desfavoráveis, actualmente, qualquer manual de proprietário de um veículo Tesla contém, na parte referente às câmaras, quer para o modo “dashcam” quer para o modo “sentinela”, a seguinte nota: 

É exclusivamente da sua responsabilidade consultar e assegurar a conformidade com todos os regulamentos locais e restrições de propriedade locais no que diz respeito à utilização de câmaras”. 

    Sendo assim, incumbe ao utilizador das câmaras (normalmente o proprietário) o dever de se assegurar que todas as normas que temos vindo a referir estão a ser cumpridas, sob pena de ele próprio vir a ser responsabilizado (não só na esfera contraordenacional, mas também na esfera penal).

 

2.1.4 – Existência de “interesse legítimo” para a instalação/utilização de sistema de videovigilância em veículo.  


    Sem prejuízo do que foi anteriormente exposto, a instalação de sistemas de videovigilância é lícita quando se revelar necessária à salvaguarda dos “interesses legítimos” do responsável pelo tratamento ou de terceiros, salvo quando se sobreponham interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que justifiquem a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança [art.º 6.º n.º 1 al.ª f), do RGPD]. 

    Quanto aos pressupostos deste “interesse legítimo”, nas Diretrizes 3/2019 podemos ler que ele deve ser real e actual [22], não podendo ser meramente hipotético ou especulativo [23]

[22] Por exemplo, alguém instala um sistema de videovigilância num veículo, com câmaras a filmar o espaço envolvente, já que o mesmo fica habitualmente estacionado numa zona com histórico de crimes (não é necessário que o responsável pelo tratamento de dados tenha já sofrido danos). Ou o proprietário de um veículo de marca Tesla que acciona o modo “sentinela” por essa mesma razão.

[23] No exemplo anterior, já não haverá “interesse legítimo” se este se fundar na mera possibilidade de ocorrência futura de um crime. 

    O Comité Europeu para a Proteção de Dados entende que, à luz do princípio da responsabilidade, é aconselhável que os responsáveis pelo tratamento de dados documentem os incidentes relevantes (incluindo data, método e, sempre que possível, informações sobre eventuais com denúncias criminais), de modo a reforçar a observância do fundamento do “interesse legítimo”. 

    Aquele Comité tem entendido também que a existência de um “interesse legítimo” deve ser reavaliada periodicamente, de modo a verificar se se mantém real e actual.

 

2.1.4.1 – E se houver oposição de terceiros? 

    Mesmo no caso de um sistema de videovigilância fundado no interesse legítimo, o titular dos dados pessoais (neste caso, da imagem) tem o direito de se opor, a qualquer momento, ao tratamento, por motivos relacionados com a sua situação particular, cfr. art.º 21.º n.º 1, do RGPD. 

    Perante a oposição, a filmagem deve cessar, a não ser que o responsável pelo tratamento apresente razões imperiosas e legítimas para esse tratamento prevaleça sobre os interesses, direitos e liberdades do titular dos dados. [24] 

[24] Neste caso, o prosseguimento da filmagem só é legítimo no quadro de um estado de necessidade, na sua dimensão probatória (art.º 34.º do CP).

 

3 – Admissibilidade de gravações obtidas ilegalmente como prova em processo penal 

    Imaginemos, agora, que alguém utiliza um sistema de videovigilância com câmaras orientadas para a via pública, sem que se verifique qualquer “interesse legítimo”, e que, fortuitamente, a respetiva gravação capta um elemento relevante, envolvendo a imagem de terceiros, suscetível de servir como meio de prova em processo penal. 

    Considerando tudo o que ficou exposto, podemos concluir que este sistema de videovigilância viola o disposto no art.º 19.º n.º 2 al.ª a), da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, pelo que as respetivas gravações devem ser consideradas ilegais. 

    Mas, ainda assim, poderão ser usadas como meio de prova num processo penal? 

    Decorre do art.º 167.º n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP) que a utilização de imagens como meio de prova é processualmente proibida quando a sua recolha (ou ulterior utilização) constitua um ilícito penal, nomeadamente o crime de gravações e fotografias ilícitas previsto no art.º 199.º n.º 2 al.ªs a) e b), do CP. 

    Importa, desde logo, assinalar que, sendo as imagens recolhidas na via pública sem que exista um “interesse legítimo” que, nos termos do RGPD, legitime a instalação ou utilização de um sistema de videovigilância, não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude ao abrigo do art.º 31.º n.º 1, do CP (princípio da unidade dos sistema jurídico). 

    No que concerne ao crime de gravações e fotografias ilícitas, deve-se notar que a ilicitude penal de manifesta em dois planos distintos: 

 1.º [al.ª a)] fotografar ou filmar outra pessoa contra a sua vontade (expressa ou presumida). 

Neste caso, entendemos que não se verifica o preenchimento do tipo de crime sempre que a recolha da imagem se mostre justificada pela notoriedade da pessoa fotografada ou filmada, pelo cargo que exerce, por exigências de polícia ou de justiça, ou quando tal recolha se integre na captação de lugares públicos ou de factos de interesse público, ou que hajam decorrido publicamente, situações em que não é exigível o consentimento, nos termos do art.º 79.º n.º 2, do CC. 

 2.º [al.ª b)] utilizar ou permitir que se utilizem, contra vontade (expressa ou presumida) fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos. 

Relativamente à utilização da imagem, o art.º 79.º n.º 2, do CC, apenas estabelece que não é necessário o consentimento quando ela se encontra justificada pela notoriedade da pessoa fotografada ou filmada, pelo cargo que desempenha ou por exigências de polícia ou de justiça[25] 

[25] Como já referimos anteriormente, a segunda parte do art.º 79.º n.º 2, do CC, refere-se apenas à recolha de imagem e não à sua utilização. 

    Mas será que, no caso com que iniciámos a presente secção, as imagens captadas na via pública (fora do quadro legal da videovigilância) poderiam ser utilizadas no processo penal, mesmo contra a vontade da pessoa filmada, “por exigências (…) de justiça” (art.º 79.º n.º 2, do CC)? 

    Alguns autores sustentam que as imagens devem poder ser admitidas no processo penal mesmo sem o consentimento do visado. Tal entendimento assenta na invocação de uma justa causa, essencialmente decorrente da ponderação dos valores em conflito, na qual a realização da justiça prevalece sobre o direito à imagem, sendo por vezes convocado o regime previsto no art.º 79.º n.º 2, do CC, para fundamentar essa prevalência. 

    Não concordamos com esta posição porque esvazia de conteúdo o art.º 167.º n.º 1, do CPP. 

    Outros autores defendem que o art.º 167.º n.º 1, do CPP, ao disciplinar especificamente a utilização de imagens em processo penal, exige uma compreensão restritiva do art.º 79.º, n.º 2, do CC, no que se refere às ‘”exigências de justiça”. 

    Assim, segundo tal entendimento, a cláusula das “exigências de justiça” não encontra, em regra, aplicação no processo penal, porquanto este dispõe de um regime próprio previsto no CPP. [26] 

[26] Segundo esta posição, tais imagens não poderiam ser utilizadas no processo penal, ainda que constituíssem prova essencial de um crime de homicídio.

    Na nossa opinião temos que conciliar aquelas três normas, ou seja: 

Em primeiro lugar, deve verificar-se se está preenchido o tipo de crime do art.º 199.º n.º 2 al.ª b), do CP, isto é, se estão a ser utilizadas fotografias ou filmes contra a vontade do titular, seja ela expressa ou presumida, mesmo que tenham sido obtidos de forma lícita. [27] 

[27] Um arguido dificilmente daria o seu consentimento para a utilização de fotografia ou filme como prova incriminatória no processo penal. 

Preenchido este tipo de crime, cumpre averiguar se a ilicitude do facto não poderá ser excluída pelas “exigências de justiça” do art.º 79.º n.º 2, do CC, cjg. com o art.º 31.º n.º 1 do CP. 

Entendemos que estas “exigências de justiça” assumem um valor normativo e hermenêutico próprio, impondo uma ponderação casuística de valores em conflito, ou seja, entre a realização da justiça e o direito à imagem. 

Assim, o art.º 79.º n.º 2, do CC, deve aplicar-se apenas quando o uso da imagem se revelar necessário ou indispensável à realização da justiça, e quando o direito à proteção da imagem do interessado prevalecer em menor grau, de modo que a eventual ofensa não se configure como desproporcional nem atentatória da dignidade da pessoa. 

Excluída a ilicitude do facto com fundamento numa causa de justificação legal, as imagens constituem meio de prova admissível no processo penal, nos termos do art.º 167.º n.º 1, do CPP.

 

Convidamo-lo(a) a deixar um comentário sobre o artigo que acaba de ler e, caso entenda que o seu conteúdo poderá ser útil a outras pessoas, a partilhá-lo↓ ↓ 

__________________________________________________________

AVISO: Todo o conteúdo deste texto encontra-se protegido por Direitos de Autor, sendo expressamente proibida a sua cópia, reprodução, difusão ou transmissão, utilização, modificação, venda, publicação, distribuição ou qualquer outro uso, total ou parcial, comercial ou não comercial, quaisquer que sejam os meios utilizados, salvo, com a concordância do seu autor, Paulo Alexandre Fernandes Soares, ou então, desde que claramente identificada a sua origem, ao abrigo do direito de citação.
___________________________________________________________ 

 

4 comentários:

  1. Muitos parabéns pelo excelente contributo.

    ResponderEliminar
  2. Então e porque é que existe várias marcas no mercado já equipadas de origem com estes equipamentos tipo as viaturas da Tesla?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro visitante,

      O facto de um sistema vir instalado de origem, pelo fabricante, não o torna, por si só, conforme ao direito nacional. A legalidade não se presume da engenharia…

      Vários construtores (incluindo a Tesla) já foram censurados por autoridades europeias exatamente por integrarem equipamentos cuja utilização, tal como fornecida, violava regras de proteção de dados.

      Mas recomendo a leitura da secção 2.1.3 deste artigo, para ver como a Tesla, na expressão popular, “sacode a água do capote”.

      Com os meus melhores cumprimentos,

      PS

      Eliminar