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Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

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quarta-feira, 20 de março de 2024

Furto (de uso) de veículo e a detenção em flagrante delito

 

Fonte: Google Imagens

    Atentemos no seguinte caso fictício (que bem poderia ser real):

No dia 15 de Março de 2024, pelas 02H00, António, com o auxílio de uma gazua, subtraiu o automóvel de Bento (no valor de 10.000 euros), com a intenção de se apropriar dele.

Ainda no mesmo dia, ao aperceber-se do furto, Bento deslocou-se ao posto policial mais próximo e denunciou-o.

Três dias após a denúncia, António foi surpreendido, por uma patrulha da PSP, a conduzir o automóvel de Bento.

Sabendo que ao crime de furto (de veículo) correspondia, em abstracto, uma pena mais elevada [1], António não disse aos agentes que se pretendia apropriar dele, mas que o estava a usar temporariamente por o seu se encontrar a reparar. [2].

António acabou por ser detido em flagrante delito.

Quid Juris?

[1] António sabia que, face ao valor monetário do veículo (10.000 euros), incorria na prática de um crime de furto qualificado, punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, cfr. art.ºs 202.º al.ª a); 203.º n.º 1 e 204.º n.º 1 al.ª a), todos do Código Penal (CP). 
[2O crime de furto de uso de veículo não se encontra sujeito às qualificações do art.º 204.º do CP, sendo, por isso, independentemente do seu valor monetário, punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, cfr. art.º 208.º n.º 1 do CP.


   Segundo o acórdão do STJ, de 15 de Setembro de 1993 (proc. n.º 043643, rel. Teixeira do Carmo):

o crime de furto (de veículo), furtum rei (p. e p. actualmente pelo art.º 203.º n.º 1 do CP, ou eventualmente pelo art.º 204 em função do valor monetário), “é, por sua natureza, um crime de execução instantânea, cuja consumação se opera com a subtracção”.

já o crime de furto de uso de veículo, furtum usus (p. e p. hodiernamente pelo art.º 208.º n.º 1 do CP), é um “crime de execução permanente, cuja consumação não se esgota na subtracção, antes perdura enquanto subsistir a situação transitória, mas anti-jurídica, criada, cessando quando o agente abrir mão da coisa, deixando-a a seguir, pronta a reingressar na esfera patrimonial do lesado”.

    Ora, no nosso caso prático, de acordo com as regras do flagrante delito [art.º 256.º do Código de Processo Penal (CPP)] e considerando a posição assumida pelo STJ, naquele aresto, António, assumindo a intenção de apenas usar o veículo temporariamente, seria detido em flagrante delito [3], o que já não sucederia se assumisse a intenção de se apropriar dele [4][5]

[3Tal aconteceria, pois, segundo aquele acórdão, sendo, o crime de furto de uso de veículo, um crime de execução permanente, havendo evidência probatória, a flagrância duraria enquanto não cessasse a permanência (com a restituição ou devolução do veículo), cfr. art.º 256.º n.º 3 do CPP.
[4Sendo, o crime de furto (de veículo), um crime de execução instantânea, o mesmo consumar-se-ia com a subtracção, ou seja, com a aquisição, por parte do António, de um pleno e autónomo domínio sobre o veículo, com a intenção de se apropriar dele. E, para haver flagrante delito, nos termos do art.º 256.º n.ºs 1 e 2 do CPP:
o António teria que ser surpreendido a cometer o crime (flagrante delito em sentido estrito); ou
ser surpreendido logo no momento em que findou a execução mas “ainda no local da infracção em momento no qual a evidência da infracção e do seu autor deriva directamente da própria surpresa” (Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, II, pág. 389) – quase flagrante delito –, ou;
ser perseguido por qualquer pessoa, logo após o crime, ou ser encontrado (noutro local), logo a seguir ao mesmo, com sinais ou objectos que mostrassem claramente que o cometeu ou nele participou (presunção de flagrante delito).
Em modo de curiosidade, no acórdão do TRP, de 01/02/2012, concluiu-se que existia presunção de flagrante delito num caso em que, 2 ou 3 horas após um crime de homicídio, o agente foi encontrado com um objecto e sinais que mostravam claramente que o tinha acabado de cometer.
[5Seria incompreensível que, nas circunstâncias descritas no nosso caso prático, António pudesse ser detido, em flagrante delito, no caso de furto de uso e já não no furto da própria substância, que, para além de mais grave, o engloba.

    Contrariamente ao que defende o STJ, no aresto sup. cit. (e que estranhamente tem sido aceite pela doutrina e jurisprudência), entendemos que, quer o crime de furto (de veículo), quer o crime de furto de uso de veículo, são crimes de execução instantânea, embora com efeitos permanentes.

    Na nossa opinião, quer um quer outro se consumam com a subtracção do veículo [6], animada, em relação ao furto (de veículo), de intenção de apropriação e, em relação ao furto de uso de veículo, de intenção de restituição ou devolução.

[6Nas palavras de Paulo Saragoça da Matta (in Direito penal: parte especial: lições, estudos e casos. Coimbra Editora, 2007, pág. 654), a subtracção verifica-se e o furto consuma-se “quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infracção com tendencial estabilidade, i. e (…) pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito”.

    E, sendo ambos crimes de consumação instantânea, o seu agente só pode ser detido, em flagrante delito, nas situações descritas supra na nossa nota [4].

    Considerando este entendimento, no nosso caso prático, por terem decorrido três dias após o furto, António nunca poderia ser detido em flagrante delito. [7]

[7Sendo assim, a formalização da apreensão do veículo (e eventual constituição de arguido e sujeição a termo de identidade e residência) teria de ocorrer no local da abordagem policial, nunca podendo, o António, ser conduzido ao posto policial (salvo com o seu consentimento de alguma forma documentado, ou no caso de impossibilidade de identificação nos termos do art.º 250.º n.º 6 do CPP) por não haver base legal para tal privação da liberdade.

 

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