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Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

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segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Violência Doméstica - dos números à realidade

Fonte: Google Imagens

    Neste artigo, iremos dedicar a nossa atenção à violência doméstica, enquanto violência física ou psíquica exercida entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre quem conviva ou tenha convivido em condições análogas, crime p. e p. no art.º 152.º n.º 1 al.ªs a) a c) do Código Penal (doravante apenas CP). [1]

[1] Exclui-se, propositadamente, a violência física ou psíquica exercida sobre “pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica” que coabite com o agressor [art.º 152.º n.º 1 al.ª d) do Código Penal, doravante apenas CP] , ou exercida sobre os menores referidos na al.ª e) do mesmo preceito legal.


1.1 - Nota prévia 

    A versão originária deste artigo foi escrita em Abril de 2013. Decorridos cerca de 10 anos, ao consultarmos os indicadores divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça, concluímos que o crime de “violência doméstica cônjuge/análogos” tem-se mantido, com poucas variações [2], no Top 5 dos crimes mais registados pelas autoridades policiais. 


[2] Verificamos que nos anos de 2019 e 2020 houve um aumento significativo do número de registos. Este último ano abrange um período de confinamento derivado da pandemia covid-19, e consequente convivência permanente entre “cônjuges/análogos”.

    Não obstante o elevado número de registos pelas autoridades policiais, constatamos que o número de condenados em processos-crime de “violência doméstica cônjuge/análogos” tem-se mantido sempre abaixo dos 8%. [3]


[3] Não ignoramos, contudo, que, dos crimes registados de “violência doméstica cônjuge/análogos”, alguns possam ter sido arquivados, pelo Ministério Público, após suspensão provisória do processo, cfr. art.ºs 281.º n.º 8 e 282.º n.ºs 3 e 5 do Código de Processo Penal (CPP).

    Mas qual a razão para uma taxa tão reduzida de condenações? 

    Será que todos os casos registados consubstanciam a prática de crime de violência doméstica, subsumindo-se, assim, no tipo de crime do art.º 152.º do CP? A nossa resposta é obviamente negativa.


1.2 - Violência doméstica e normas penais concorrentes

    Os registos divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça patenteiam todos os maus tratos físicos ou psíquicos que chegam ao conhecimento das autoridades policiais, a maioria das vezes por intermédio de denúncia da suposta vítima ou de terceiros.

    Assim, desde que os maus tratos reportados tenham sido perpetrados por cônjuge ou ex-cônjuge, por quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou análoga à dos cônjuges, ou por progenitor de descendente comum em 1.º grau, estamos perante um caso de violência doméstica para efeitos estatísticos.

    No entanto, aquilo que é violência doméstica para efeitos estatísticos poderá não o ser em termos de subsunção criminal.

    Conforme salienta TAIPA DE CARVALHO [4], está em causa, no tipo de crime de violência doméstica, a afectação da saúde física, psíquica e mental da vítima, por intermédio de comportamentos susceptíveis de afectar, de forma intolerável, a sua dignidade e integridade moral como ser humano.

[4] In, Comentário Conimbricense do Código Penal. Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 332.

    Estamos diante de «uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma», ou de “coisificação”, «evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima». [5] [6] 

[5] Vide, Acórdão do TRL, de 21-10-2020, proc. 689/19.7PCRGR.L1-3, rel. Florbela Sebastião e Silva, acedido e consultado aqui em 07/01/2023.
[6] Sublinhado nosso.

    Ainda que haja, nos comportamentos frequentes e sistemáticos, uma maior susceptibilidade de afectação da dignidade pessoal, o legislador, no art.º 152.º n.º 1 do CP, pune também os actos isolados.

    No entanto, se uns e outros tivessem o mesmo valor para efeitos de subsunção, o legislador não teria optado pela previsão: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, …”; bastando-se somente por: “Quem infligir maus tratos físicos e psíquicos, …”; que englobaria actos isolados e reiterados.

    Sendo assim, não havendo reiteração, a acção isolada terá que revelar uma especial intensidade ao nível do desvalor da acção e do resultado, devendo, além da susceptibilidade de lesar a saúde física ou psíquica, revelar-se como incompatível com a dignidade da pessoa por ela visada. [7]

[7] FERNANDES, Plácido Conde. Violência doméstica - Novo quadro penal e processual penal. Revista do CEJ, n.º 8 (especial), 1.º Semestre, 2008, pág. 308.

    Desse modo, v. g.:

 Duas bofetadas na cara, sem que o agressor tenha a intenção de o fazer na presença de terceiros, sujeitando a vítima a vexame e humilhação pública, não integra um crime de violência doméstica, mas de ofensa à integridade física simples p. e. p. pelo art.º 143.º n.º 1 do CP. Acórdão do TRC, de 17/11/2010; 
 
► Também não comete um crime de violência doméstica, mas um crime de ofensa à integridade física simples, aquele que, em data não concretamente apurada, agrediu a mulher com uma cadeira, dando-lhe uma pancada no peito e provocando-lhe uma contusão da parede torácica, um hematoma na região frontal e na mama e escoriações nos lábios e cotovelo. Acórdão do TRE, de 12/09/2011;

Um pontapé na barriga e um empurrão, de onde resultou uma escoriação no joelho, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou profissional, embora violadora da integridade física, não traduz a prática de maus tratos físicos integradores de um crime de violência doméstica. Acórdão do TRP, de 26/05/2010. 

    Podemos então concluir que o crime de violência doméstica está numa relação de concurso aparente com outros tipos de crime [8], nomeadamente, de ofensa à integridade física, ameaça ou de injúria (respectivamente, art.ºs 143.º, 153.º e 181.º do CP).

[8] Per summa capita, existe concurso aparente de normas quando determinada conduta preenche formalmente vários tipos de crimes, sendo que a aplicação de um tipo afasta a aplicação de qualquer outro.

1.2.1 – Reciprocidade ou retorsão proporcional

    Na esteira do expendido no Acórdão do TRL, de 09/05/2018 [9], entendemos também que o crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade, porquanto, estando “perante actos agressivos recíprocos”, perpetrados “na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade”, “o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória não é afectado, não traduzindo essas acções tratamento desumano e degradante”.

[9] Acedido e consultado aqui em 09/01/2022.

Fonte: Google Imagens

 1.3 – As «pseudo-vítimas» de violência doméstica

    Além da crítica já anunciada, os indicadores divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça contemplam todos os maus tratos físicos ou psíquicos que chegam ao conhecimento das autoridades policiais, haja ou não indícios.

    Muitas vezes esses indícios nunca chegam a manifestar-se durante o inquérito, determinando o seu inevitável arquivamento, cfr. art.º 277.º n.º 2 do CPP. Isso sucede, e. g., nos casos em que a violência doméstica é usada como “arma” após uma separação.

    Como sabemos, a separação traz consigo todo um conjunto de emoções, sentimentos e interesses antagónicos. Relações que começaram com amor, muitas das vezes terminam em ódio e desejo de retaliação.

    Esse desejo promove atitudes competitivas e intolerantes no que concerne a matérias como: regulação do exercício das responsabilidades parentais; partilhas de bens, pensão de alimentos, etc.

    Em situações mais extremas, essa retaliação pode consistir na denúncia de maus tratos físicos e/ou psíquicos, envolvendo, por vezes, os próprios filhos como vítimas de abuso sexual, visando a sua tutela ou restrição do convívio e, sobretudo, degradar a reputação e a imagem pública do outro.

    Obviamente que nesta “guerra” não vale tudo. Não há dúvidas de que a violência doméstica existe e, muitas vezes, havendo filhos envolvidos, é ocultada e prolonga-se pela vida toda. Esta sujeição ocorre porque a vítima tem como prioridade preservar a integridade da unidade familiar.

    Geralmente, essas mulheres têm dificuldade em contar a sua história, o seu discurso não é preparado, instruído, surge espontaneamente do impulso do seu sofrimento. Fazem-no, não porque tenham algo a ganhar, mas porque não têm mais nada a perder. Tentaram tudo para modificar a situação, acreditando que aquele(a) que um dia amaram mudaria o seu comportamento, o que não veio a suceder.

    Noutros casos, que não serão tão poucos quanto isso, as denúncias de violência doméstica são falsas. [10] As «pseudo-vítimas» geralmente têm um discurso estruturado, bem adestrado. Sabem bem o que querem e o que devem dizer para o alcançar.

[10] A propósito das denúncias de violência doméstica falsas, determinado Magistrado do Ministério Público avançava com uma percentagem de 90%. Vide pág. 8 do artigo: Violência doméstica e sua criminalização em Portugal: obstáculos à aplicação da lei; escrito por MADALENA DUARTE, Investigadora do Centro de Estudos Sociais e do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

    Perante o exposto, entendemos que o combate à violência doméstica deve continuar a revestir carácter prioritário, não só ao nível da repressão como da sua prevenção. [11] No entanto, deve assegurar-se que a natureza urgente atribuída a todos os processos de violência doméstica (art.º 28.º n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro) [12], de clara inspiração vitimológica, não deixa sem protecção todos aqueles que se veem inocentemente na posição de suspeito/arguido. 

[11] Cfr. art.ºs 3.º al.ª a); 4.º al.ª c); e 5.º al.ª c) da Lei n.º 55/2020, de 27 de Agosto, diploma que aprovou a Lei de Política Criminal - Biénio 2020-2022, e que se mantém em vigor dada a inexistência de sucessora.
[12] A Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, veio estabelecer o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas.

    A pronta reacção, como afirmação de efectividade dos instrumentos penais, não pode por em risco, enquanto direito fundamental, as garantias de defesa do arguido no processo criminal, em especial a presunção da sua inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art.º 32.º n.º 2 da CRP).

    Sendo assim, tendo em consideração que a maioria dos maus tratos físicos e psíquicos relatados ocorrem do domicílio comum, onde não existem testemunhas, importante se torna atribuir às declarações da “vítima” uma ponderada valorização.

    Quanto às falsas denúncias – muitas com risco elevado após o preenchimento da Ficha RVD - 1L –, as consequências perniciosas para quem é por elas visado e o desperdício de meios humanos e materiais mobilizados obrigam a que elas sejam também reprimidas e prevenidas, punindo-se quem a elas recorre, seja por: “falsidade de testemunho”, art.º 360.º do CP; “denúncia caluniosa”, art.º 365.º do CP; ou “simulação de crime”, art.º 366.º do CP.


1.4 – Outras considerações

    Entendemos que os indicadores divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça são ainda exagerados, por consagrarem, como crime violência doméstica, os maus tratos físicos ou psíquicos exercidos independentemente da durabilidade da relação, ou do vasto tempo decorrido desde a sua cessação.

    Está em causa, numa relação conjugal ou de natureza análoga, o respeito, a confiança e a solidariedade. Estes são valores fundamentais que não se adquirem com dois dias de namoro e que, apesar de duradouros, não são intemporais.

    Imagine-se um casal que manteve uma relação análoga à dos cônjuges durante três anos, sem descendentes. Vinte anos após terem terminado essa relação, encontram-se e, por qualquer motivo, envolvem-se em agressões. Subsistirão os valores inerentes à relação, de modo a que se possa subsumir o seu comportamento no crime de violência doméstica, art.º 152.º n.º 1 al.ª b) do CP? A resposta parece ser negativa.


1.5 – Conclusões

   Após as considerações precedentes, não hesitamos em afirmar que os indicadores divulgados pelo Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça, relativos ao crime de violência doméstica contra cônjuges ou análogos, são exagerados e excessivamente alarmantes, porquanto e em suma:

► Baseiam-se nos dados que chegam ao conhecimento das autoridades policiais, independentemente da sua gravidade e susceptibilidade de afectar a dignidade pessoal da vítima;

 Incluem as falsas denúncias;

 Não têm em consideração a durabilidade da relação ou o período decorrido desde a sua cessação.


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4 comentários:

  1. Ricardo Rodrigues (12/04/2013)09 janeiro, 2023 13:54

    Gostei! E concordo com o mesmo! Sem querer desprezar as vítimas de violência doméstica - cujos os sinais exteriores, para o observador atento, são por demais evidentes - a prática forense confirma muitas das conclusões aqui enunciadas. Não por uma questão economicista mas para evitar a manipulação que é feita do meio processual (por exemplo: o carácter de urgência), acredito que seja de repensar e refinar os mecanismos que são despoletados nestes casos.
    Infelizmente, como profissional forense, já tenho detectado a utilização aberrante deste expediente por pessoas que abusivamente lançam mão deste. E esse facto funciona contra as verdadeiras vítimas de violência doméstica, visto que, por exemplos, os apelos destas são ignorados ou desvalorizados. Numa simples expressão "há que separar o trigo do joio".

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  2. Luís M (29/06/2013)09 janeiro, 2023 13:56

    Sou um leigo na matéria que sendo vitima de UMA PSEUDO-VITIMA, deparei-me com o protecionismo cego que se faz à "vitima". A mãe do meu filho com quem nunca vivi, nem fui namorado, o filho resultou de uma noite de sexo,. Fui vitima de stalking por parte desta pessoa, com ameaças por mensagens, perseguições, usou o filho etc. Como resultado tenho procurado na net acordãos sobre a matéria, leio tudo sobre esta matéria e fico perplexo que em tribunal a palavra delas valem muito mais do que a nossa supostos agressores. Elas magoam-se, vão ao hospital com uma nódoa negra, uma vermilhao na cara...ninguém viu, ninguém sabe de nada, mas aquele documento e a palavra delas....É SUFICIENTE. Nestes quatro anos tenho falado com várias VITIMAS DAS PSEUDO-VITIMAS, que usam estas queixas para se vingarem.....Esta lei esta LEI ESTÁ MAL FEITA, devia punir SEVERAMENTE quem faz uma queixa falsa....A Mae do meu filho DURANTE O A FASE DE INQUÉRITO,,,,,,deu três versões diferentes,,,,uma no hospital,,,,,outra na PSP,,,,e outra no MP......por fim no julgamento deu outra....a que contou foi a ULTIMA,,,elaborada,,,,,preparada....pela advogada.....com o circo de me mandarem saír da sala,,,,para se fingir atemorizada,,,,,chorou,,,,o que é fácil para uma mulher,,,,,e dia 2 de JULHO ...acho que vou ser condenado,,,,POR ALGO QUE NÃO FIZ.......

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  3. Anónimo (06/01/2015)09 janeiro, 2023 13:57

    É lamentavel que TODOS os players destas andanças saibam que uma enorme percentagem de mulheres usem este artificio para alienar o ex marido ou ex companheiro e assim ficar com o pleno gozo de usufruir dos filhos acrescido de podera ainda pedir uma simpatica pensão e ninguem FAÇA NADA. Os numeros são gritantes chegando aos 90% de casos falsos ( pelo menos no Brasil ) e estas sras que são as verdadeiras agressoras pavoneiam-se impávidas e impunes às grotescas e infames acusações que fazem. Algumas e em ultima instancia recorrem ás acusações de pedofilia para com os filhos...São pessoas desiquilibradas? serão! são pessoas más? sem duvida! são pessoas que podem colocar inocentes na cadeia? são! ENTÂO BOLAS... FAÇA-SE QUALQUER COISA CONTRA ESTE CRIME

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  4. Anónimo (04/07/2016)09 janeiro, 2023 13:58

    Infelizmente, também fui vitima da "engrenagem" (dezenas de assistentes sociais, casas abrigo, etc,etc) que tem de ser alimentados com mentiras...nem se dignam indagar sobre o minimo! Instituições como a APAV e outras, julgam sem juiz e atribuem o estatuto sem qualquer diligência e sem respeito NENHUM pelo cidadão! (é tão grave e arruina com a auto estima e reputação que nem tenho coragem de referir pormenores)

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