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Tradução de Página

Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Outra vez os petardos!

 

Fonte: Google Imagens


1 – Introdução

    Quando nos reportamos a petardos, referimo-nos a objectos semelhantes a bombas de carnaval, mas ligeiramente maiores e com uma composição pirotécnica mais elevada, concebidos para produzir um efeito sonoro (tiro).

    Não há dúvidas de que, devido à intensidade acústica, o rebentamento de petardos junto das pessoas é prejudicial, podendo causar lesões irreversíveis nas estruturas do ouvido interno.

    A deflagração em zonas habitacionais é também susceptível de causar alarme e inquietação, e de perturbar a tranquilidade, a paz e o descanso de quem ali habita, com os efeitos sociais e comportamentais cognoscíveis da exposição ao ruído. [1]

[1De onde destacamos, et. al., distúrbios de sono, stresse, alterações de humor, irritabilidade, aumento da frequência cardíaca, falta de concentração e diminuição do desempenho cognitivo, dor de cabeça, fadiga… De destacar também a afectação negativa destes rebentamentos em grupos de seres humanos que carecem de necessidades especiais, v. g., pessoas com transtorno do espectro do autismo, com epilepsia, e até crianças e idosos.

    Mas os efeitos não se ficam pelo ser humano. Quem possui animais de companhia (sobretudo cães e gatos) reconhece, com certeza, após o rebentamento de um petardo nas proximidades, as suas respostas fisiológicas de stresse agudo.

    Isso sucede porque, como sabemos, em relação aos seres humanos, estes animais possuem uma capacidade auditiva superior, sendo que qualquer som ou ruído acima de 50/60 decibéis pode causar-lhes stresse físico e psicológico, e, além do dobro desse valor, perdas auditivas irreparáveis. [2]
 
[2] A destacar também o impacto que os rebentamentos têm na fauna selvagem, sendo relatados casos de morte súbita de aves e até de mamíferos, e atropelamento de animais em fuga. 

 

2 – Involução legislativa no último decénio

    Antes da entrada em vigor da Lei n.º 50/2013, de 24 de Julho – diploma que procedeu à quinta alteração da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (e que aprovou o novo Regime Jurídico das Armas e suas Munições, doravante apenas RJAM) –, o RJAM não fazia qualquer referência expressa a artigos de pirotecnia (onde se incluem os petardos).

    Ainda assim, havia autores – onde me incluo – que entendiam que os petardos, pelas suas características, se podiam incluir na noção de “explosivo civil”, e, consequentemente, a sua posse e/ou uso não autorizados, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, seria susceptível de se subsumir no tipo de crime de “detenção de arma proibida e crime cometido com arma”, p. e p. no art.º 86.º n.º 1 al.ª a), do RJAM. [3]

[3] A este propósito, vide o nosso artigo denominado: "Polícia quer Criminalizar Petardos". Também o Acórdão do TRP, de 12/10/2011, proc. 341/10.9SMPRT.P1, rel. Ricardo Costa e Silva, acedido e consultado aqui em 26/12/2022.

    Com a entrada em vigor da Lei n.º 50/2013, de 24 de Julho, o art.º 86.º n.º 1 al.ª d), do RJAM, passou a prever e a estatuir o seguinte:

1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)
d) (…) artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício de categoria 1 (…),é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias; 
(…)”. [4[5[6]

[4Sublinhado nosso.
[5] Com a Lei n.º 50/2013, de 24 de Julho, foi introduzida, também no RJAM, mais precisamente no seu art.º 2.º n.º 5 al.ª af), a definição de “artigo de pirotecnia”, como sendo “qualquer artigo que contenha substâncias explosivas ou uma mistura explosiva de substâncias, concebido para produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno ou uma combinação destes efeitos, devido a reacções químicas exotérmicas autossustentadas”.
[6] O “fogo-de-artifício de categoria 1”, na definição introduzida pelo art.º 2.º n.º 5 al.ª af), do RJAM, é “o artigo de pirotecnia destinado a ser utilizado para fins de entretenimento que apresenta um risco muito baixo e um nível sonoro insignificante e que se destina a ser utilizado em áreas confinadas, incluindo os fogos-de-artifício que se destinam a ser utilizados no interior de edifícios residenciais” (sublinhado nosso). Perante as particularidades que realçamos, claramente excluíamos os petardos do conceito de “fogo-de-artifício de categoria 1”.

    Assim, a partir daquele momento, a posse e/ou uso de artigos de pirotecnia (incluindo, claro está, os petardos) passou a preencher, expressamente, o tipo de crime de “detenção de arma proibida e crime cometido com arma”, p. e p. pelo art.º 86.º n.º 1 al.ª d), do RJAM.

    Com a entrada em vigor da Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho – diploma que procedeu à sexta alteração do RJAM –, este art.º 86.º n.º 1 al.ª d) passou a abranger o seguinte:

(…)
d) (…) artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho (…), é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
(…)”. (Sublinhado nosso)

    Este diploma introduziu também, no art.º 2.º n.º 5 al.ª ag) do RJAM, a definição de “fogo-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de Julho”, como sendo:

o artigo de pirotecnia destinado a ser utilizado para fins de entretenimento que apresenta um risco muito baixo e um nível sonoro insignificante e que se destina a ser utilizado em áreas confinadas, incluindo os fogos-de-artifício que se destinam a ser utilizados no interior de edifícios residenciais”. [7]

[7] Curiosamente, esta noção do RJAM coincide, ipsis litteris, com a definição de fogos-de-artifício da categoria F1, contida no referido art.º 6.º n.º 1 al.ª a) i) do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de Julho, sendo que, de acordo com este mesmo art.º (e diversamente do que dispõe a definição do RJAM):

● Os fogos-de-artifício das categorias F2 e F3 não se destinam a ser utilizados no interior de edifícios residenciais;
 Os fogos-de-artifício da categoria F3 não apresentam um risco baixo, mas médio, e destinam-se a ser utilizados em grandes áreas exteriores abertas, não em áreas confinadas e muito menos no interior de edifícios residenciais.

    Então, será que a partir desse momento a posse e/ou uso de “fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de Julho”, passou a ser totalmente livre?

Fonte: Google Imagens

3 – Regime Jurídico Actual

    Para respondermos à questão anterior, atentemos no seguinte caso ficcionado (que bem podia ser real):

    Entusiasmado com o avizinhamento das festividades, o João, um jovem com 16 anos de idade, adquiriu uma caixa de petardos numa loja online. Os mesmos possuíam uma marcação «CE» e a classificação «F2». Num Sábado à tarde, colocou alguns nos bolsos e decidiu rebentá-los junto aos prédios dos seus vizinhos. Logo após os primeiros rebentamentos, alguns deles, descontentes, telefonaram para a polícia. Breves minutos depois, o João foi surpreendido, por dois agentes de autoridade, ainda na posse de quatro petardos. Quid Juris?

    O facto de a utilização de produtos pirotécnicos se encontrar intrinsecamente ligada às festividades religiosas, culturais e tradicionais na maioria dos Estados-membros da União Europeia, e a própria significância económica da indústria pirotécnica no Espaço Europeu, determinaram a harmonização das disposições em vigor, nos diversos Estados-membros, relativas à colocação no mercado de artigos de pirotecnia. [8]

[8Neste sentido, são de realçar a Diretiva n.º 2007/23/CE, de 23 de Maio, e a Directiva n.º 2013/29/UE, de 12 de Junho, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho – transpostas para a ordem jurídica interna, respectivamente, pelo Decreto-lei n.º 34/2010, de 15 de Abril, e pelo Decreto-lei n.º 135/2015, de 28 de Julho (que revogou o seu antecessor e se mantém em vigor com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 91/2021, de 29 de Janeiro).

    Estas regras harmonizadas, além de garantirem “a livre circulação de artigos de pirotecnia no mercado interno”, vieram assegurar, simultaneamente, “os requisitos essenciais de segurança que os mesmos devem satisfazer tendo em vista a sua disponibilização no mercado, de forma a garantir um elevado nível de protecção da saúde humana e da segurança pública, a defesa e a segurança dos consumidores, e tendo em conta os aspectos relevantes relacionados com a protecção ambiental”. [9]

[9Este objectivo encontra-se previsto no art.º 1.º do Decreto-lei n.º 135/2015, de 28 de Julho. Será a este diploma legal que nos referiremos, doravante, sempre que um artigo venha desacompanhado de qualquer referência legislativa.

    Tendo em vista a concretização deste objectivo securitário, estabeleceu-se, nos art.ºs 35.º a 38.º, um regime sancionatório aplicável à violação de determinados comportamentos. Destacamos, desde logo, porque aplicável ao nosso caso prático, o art.º 35.º n.º 3, que prevê e estatui o seguinte:

Constitui contra-ordenação punível com uma coima entre 150 a 500 euros [10], tratando-se de pessoa singular, “a utilização de fogos-de-artifício da categoria F1 e F2 em violação das prescrições contidas nos respectivos rótulos ou em norma técnica que regulamente essa utilização, nomeadamente quanto ao local, utilização ou incumprimento das distâncias mínimas de segurança exigíveis”. 

[10] Nos termos do art.º 18.º al.ª a) i) do Decreto-lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, diploma que aprovou o Regime Jurídico das Contra-ordenações Económicas (RJCE).

    Hodiernamente, para livre disponibilização de artigos de pirotecnia no mercado, os respectivos fabricantes devem, previamente, inter alia:

 Classificá-los “de acordo com o tipo de utilização, a finalidade e o nível de risco, incluindo o sonoro” (art.º 6.º); [11]

[11Considerando esta classificação, um petardo inclui-se na noção de “fogo-de-artifício”, tratando-se de um “artigo de pirotecnia destinado a ser utilizado para fins de entretenimento” [art.º 3.º al.ª j) do RJAM]. Na classificação prevista no art.º 6.º n.º 3 al.ª a), os petardos inserem- se nas categorias F2, F3 e F4. A categoria F1, pelo seu alcance, não os abrange [vide, Anexo I, Grupo A, n.º 1, al.ª a) iii)].

→ Assegurar que eles foram concebidos e fabricados em conformidade com os requisitos essenciais de segurança estabelecidos no anexo I, devendo, em caso de avaliação positiva, elaborar a declaração UE de conformidade (cfr. art.ºs 9.º n.ºs 1 a 3; 17.º e 18.º);

→ Apor-lhes uma “marcação CE”, indicadora da sua conformidade com os requisitos estabelecidos nas normas comunitárias. [art.ºs 3.º al.ª m); 9.º n.º 3, in fine; 19.º e 20.º];

→ Garantir que eles são rotulados “de modo visível, legível e indelével”, e com conteúdo claro, compreensível e inteligível, incluindo, nomeadamente (art.º 11.º n.ºs 1 e 2):

● Informação sobre o fabricante (e do importador, no caso de fabricante não estabelecido na UE);
● A designação, tipo e categoria do artigo de pirotecnia;
● Número de registo e o número do produto, do lote ou da série;
● O limite mínimo de idade para a sua disponibilização no mercado [no caso dos fogos de artifício, art.º 7.º n.º 1 al.ª a)];
● Instruções de utilização; e
● Distância mínima de segurança exigível na sua utilização. [12]

[12Relativamente aos “fogos-de-artifício”, não obstante esta informação dever constar nos respectivos rótulos, encontramos, no Anexo I, Grupo A, al.ªs a) i); b) i); e c) i), distâncias mínimas de segurança que devem ser cumpridas para as categorias F1, F2 e F3.

Fonte: Google Imagens
 

A – Punição da utilização

    No nosso caso prático, o João usou petardos com marcação CE e classificação F2. Embora um petardo de categoria F2 se destine a ser utilizado em áreas confinadas e apresente um risco baixo [art.º 6.º n.º 3 al.ª a) ii)], a sua utilização, nos termos do art.º 35.º n.º 3, sup. cit., deve obedecer às “prescrições contidas nos respectivos rótulos ou em norma técnica que regulamente essa utilização, nomeadamente quanto ao local, utilização ou incumprimento das distâncias mínimas de segurança exigíveis”.

    Mas que "norma técnica" é esta?

    Nos termos do art.º 39.º n.º 2, “a regulamentação da utilização dos artigos de pirotecnia previstos no presente decreto-lei é também da competência do Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública” (DN/PSP).

    Neste âmbito, foi emitida, pelo Departamento de Armas e Explosivos da DN/PSP, a Norma Técnica n.º 3/2018 (em vigor desde o dia 9 de Junho de 2018), a qual veio estabelecer, na respectiva Secção II, “as regras a que deve obedecer a utilização de artigos de pirotecnia por consumidores em espaços públicos ou equiparados” (art.º 1.º, 1.ª parte).

    Sendo assim, nos termos do art.º 5.º dessa norma técnica:

→ Os fogos-de-artifício das categorias F1, F2 e F3 “só podem ser utilizados e manipulados individualmente pelos consumidores”, de acordo com as prescrições contidas nos respectivos rótulos, “tal como foram adquiridos e disponibilizados no mercado, sendo proibida a utilização combinada destes artigos através dos seus sistemas de iniciação” (n.º 1);

→ É proibida a utilização de artigos de pirotecnia por pessoas que apresentem uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,50 g/l, que se encontrem sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo (n.ºs 2 e 3).

    E, nos termos do seu art.º 6:

→ É proibida a utilização de fogos-de-artifício das categorias F2 e F3, “salvo se autorizado pela autoridade policial do município, a menos de 50 metros de edifícios hospitalares ou similares, locais de culto religioso, de estabelecimentos de ensino públicos ou privados, durante o horário de funcionamento” (n.º 1);

→ As distâncias de segurança previstas nos rótulos dos fogos-de-artifício das categorias F1, F2 e F3 “devem ser também observadas relativamente a edifícios de habitação, a espaços públicos e equiparados onde se verifique grande aglomeração de pessoas ou veículos, centros históricos, monumentos, viadutos e túneis rodoviários” (n.º 2);

→ A utilização de fogos-de-artifício das categorias F1, F2 e F3 “está sujeita ao cumprimento do Regulamento Geral do Ruído, designadamente nas proximidades de edifícios de habitação, aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, entre as 23 e as 7 horas” (n.º 3);

→ É proibida a utilização de artigos de pirotecnia nas proximidades de substâncias susceptíveis de arder e, independentemente de tal, quando seja de prever a existência de risco de incêndio” (n.º 4).

→ O disposto anteriormente “é aplicável à utilização de artigos de pirotécnica em espaços privados, quando da sua utilização possam resultar projecções de resíduos que ultrapassem os limites desse espaço”. 

    Voltando ao nosso caso prático, com os parcos elementos factuais aduzidos, podemos afirmar que o João – ao proceder, num Sábado, ao rebentamento de petardos nas proximidades de edifícios de habitação, muito possivelmente com inobservância das distâncias de segurança em relação a eles –, incumpriu, pelo menos, o disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 6.º da norma técnica sup. cit.

    Consequentemente, o seu comportamento preencheu o tipo contraordenacional já referido, previsto no art.º 35.º n.º 3 e punido com uma coima entre 150 a 500 euros, nos termos do art.º 18.º al.ª a) i) do RJCE. 


    I – Questões complementares

    E se, nas mesmas circunstâncias, o João, em vez de rebentar petardos de categoria F2, rebentasse:

    a) Petardos de categoria F3?

 Neste caso, a sua conduta preencheria o tipo contraordenacional previsto no art.º 35.º n.º 2 al.ª a), sendo punida com uma coima entre 650 a 1500 euros, nos termos do art.º 18.º al.ª b) i) do RJCE.

    b) Petardos de categoria F4?

 Nos termos do art.º 6.º n.º 3 al.ª a) iv), os petardos (fogos-de-artifício) de categoria F4 apresentam um risco elevado e destinam-se a ser utilizados exclusivamente por pessoas com conhecimentos especializados. Por este motivo, e porque não se encontram excluídos da al.ª d) do n.º 1 do art.º 86.º do RJAM, a conduta do João subsumir-se-ia no tipo de crime de “detenção de arma proibida e crime cometido com arma”, p. e p. neste mesmo preceito legal.

Não obstante se encontrar concomitantemente preenchido o tipo contra-ordenacional do art.º 35.º n.º 2 al.ª a), o João seria punido apenas a título de crime, cfr. art.º 20.º (“concurso de infracções”) do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

    c) Petardos de fabrico artesanal?

 Os petardos de fabrico artesanal são artigos de pirotecnia, em geral muito instáveis, que não satisfazem os requisitos de segurança sup. cit. (v. g., marcação CE), constantes do Decreto-lei n.º 135/2015, de 28 de Julho.

Por integrarem a noção de “explosivo civil” contida no art.º 2.º n.º 5 al.ª l) do RJAM, e com a argumentação ínsita no nosso artigo "Polícia quer Criminalizar Petardos", a conduta do João preencheria o tipo de crime do art.º 86.º n.º 1 al.ª a) do RJAM.


B – Punição da posse

    Como vimos supra, no art.º 35.º n.ºs 2 al.ª a) e 3 pune-se a utilização de fogos-de-artifício “em violação das prescrições contidas nos respectivos rótulos ou em norma técnica que regulamente essa utilização, nomeadamente quanto ao local, utilização ou incumprimento das distâncias mínimas de segurança exigíveis”, pressupondo-se, contudo, a sua detenção lícita.

    Todavia, por razões de ordem ou segurança públicas, ou de protecção ambiental, a posse, utilização e venda de fogos-de-artifício das categorias F2 e F3 pode ser proibida ou restringida (cfr. art.º 5.º n.º 2).

    É o que sucede com os petardos de tais categorias, cujo efeito sonoro «de tiro», é “passível de causar alarme e intranquilidade social quando utilizados sem as devidas precauções, provocando alterações à ordem e tranquilidade pública” (cfr. preâmbulo da Portaria n.º 139/2017, de 17 de Abril).

    Esta Portaria estabeleceu, no art.º 3.º n.ºs 3 al.ª a) e 4, dois níveis de restrição, a saber:

a) Petardos de categoria F3

 A sua disponibilização no mercado é proibida.

b) Petardos de categoria F2

● A sua aquisição está dependente da apresentação prévia de autorização emitida “pela Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública, mediante avaliação dos fins a que se destina”.

    No caso prático que temos vindo a acompanhar, se o João se encontrasse na posse (ilícita) de petardos de categorias F2 (aquisição não autorizada pela DN/PSP) e/ou F3, seria ainda punido [13com a contra-ordenação prevista no art.º 35.º n.º 2 al.ª c), punível com uma coima entre 650 a 1500 euros, nos termos do art.º 18.º al.ª b) i) do RJCE.

[13Em concurso de contra-ordenações, cfr. art.º 19.º n.ºs 1 a 3 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

    No caso de se tratar de petardos de categoria F4 e de fabrico artesanal, a mera posse faria incorrer o João nos tipos de crime de “detenção de arma proibida e crime cometido com arma”, previstos e punidos, respectivamente, pelas al.ªs d) e a) do n.º 1 do art.º 86.º do RJAM. [14]

[14] No caso de petardos de fabrico artesanal, pelos motivos referidos na secção anterior [A, I, c)], designadamente por integrarem a noção de “explosivo civil” contida no art.º 2.º n.º 5 al.ª l) do RJAM.


C – Punição da disponibilização no mercado

a) De petardos de categorias F2 (aquisição não autorizada pela DN/PSP) e F3

► Quer os distribuidores (dentro dos Estados-membros da UE) quer os importadores, antes de disponibilizarem ou colocarem um artigo de pirotecnia no mercado, devem, nos termos dos art.ºs 13.º n.º 2 al.ª e) e 14.º n.º 2 al.ª d), assegurar que a disponibilização ou colocação respeita as medidas restritivas da posse, utilização ou venda de artigos de pirotecnia, previstas na Portaria sup. cit.

A violação deste dever faz incorrer o distribuidor ou importador numa contra-ordenação prevista no art.º 35.º n.º 1 al.ª b), punida com uma coima entre 2000 e 7500 euros (no caso de pessoa singular), nos termos do art.º 18.º al.ª c) i) do RJCE.

b) De petardos de categoria F4 ou de fabrico artesanal

► Os distribuidores e os importadores que procederem à venda deste tipo de artigos pirotécnicos incorrem no tipo de crime de “tráfico e medicação de armas”, p. e p. no art.º 87.º n.º 1, do RJAM, por referência, respectivamente, às al.ªs d) e a) do n.º 1 do art.º 86.º, do mesmo diploma legal. [15]

[15] No caso de petardos de fabrico artesanal, pelos motivos referidos na secção anterior [A, I, c)], designadamente por integrarem a noção de “explosivo civil” contida no art.º 2.º n.º 5 al.ª l) do RJAM.


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quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Jurisprudência destacada - polícias municipais


Fonte: Google Imagens








→ Polícias Municipais;
→ Condução de veículo em estado de embriaguez;
→ Recusa de teste para a detecção do estado de alcoolemia.


    Sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03 de Maio de 2022, proc. 596/21.3PGCSC.L1-5, rel. Luís Gominho.

– O crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, e 170.º, n.º1, al. b), do Cód. da Estrada, trata-se de infracção em que um dos elementos do tipo objectivo faz apelo a um exame considerado de natureza pericial para a sua determinação quantitativa.

– É vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, o que aquelas claramente não são, não tendo pois competência para determinar o referido teste quantitativo, o verdadeiramente essencial para a verificação da infracção.

– As polícias municipais podem fiscalizar o trânsito rodoviário no âmbito da sua jurisdição territorial, mormente de prevenção da sua realização alcoolizada, efectuar o chamado teste “qualitativo” para a sua despistagem, sendo que em caso positivo (leia-se susceptível de constituir crime, como no caso em presença), devem deter o infractor, e conduzi-lo à esquadra ou posto do OPC com jurisdição na área de detecção do ilícito, “ou, em alternativa, contactar aquela força de segurança para que possa entregá-lo no imediato, dando conta, precisamente, da verificação de flagrante delito da prática de condução em estado de embriaguez”, e assim se prosseguirem os demais termos do processo.

– Ainda que se aceite que o condutor automóvel, na situação indicada, estava obrigado a submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de alcoolemia em que se encontraria, já não se acompanha a tese que sustenta que nessas exactas condições, praticaria um crime de desobediência, caso recusasse.

– Tal só sucederia se o tivesse feito perante o OPC competente.

    O texto integral do Acórdão pode ser consultado aqui.

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sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A Polícia e o Direito à Imagem/Palavra

Fonte: Google Imagens

1 –
Introdução

    Pretende-se, com o presente artigo, fornecer um modesto contributo na busca da melhor resposta à problemática que o tema – indiciado pelo título – encerra. A ideia da sua elaboração surgiu após o «meet» que decorreu no Parque das Nações – com os desenvolvimentos que todos pudemos conhecer através da comunicação social. [1]

    [1Os «meets» (encontros) são eventos organizados por jovens, a partir das redes sociais, com o objectivo de se juntarem e conviverem, partilhando, posteriormente, as imagens captadas nesses encontros.

    Após a desordem que se instalou e o pânico gerado, a força de segurança territorialmente competente instalou um perímetro de segurança, barrando a passagem a cidadãos que se enquadrassem no perfil dos prevaricadores.

    Não obstante o direito de livre deslocação e fixação [art.º 44.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP)], esta medida restritiva, levada a cabo pelo tempo estritamente indispensável, revelou-se como necessária para garantir a segurança e a protecção de pessoas e dos seus bens, face à perturbação violenta da ordem pública (com condutas jurídico-penalmente relevantes), art.º 30.º da Lei de Segurança interna, cjg. art.º 18.º n.º 2 da CRP.

    Na subsequência daquela actuação policial, foi publicado, na rede social «Facebook», um vídeo (captado por intermédio de um telemóvel) que reproduzia um encontro com polícias uniformizados à entrada do Centro Comercial Vasco da Gama, tendo como enfoque exclusivo as suas caras e respectivas vozes. 

    Analisemos, doravante, a legitimidade dessa gravação, bem como da sua publicação, à luz dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 

2 – Do Direito à Imagem

    Desde logo, consultando o art.º 79.º n.º 1 do Código Civil (CC), concluímos que a imagem de uma pessoa não pode ser exposta, reproduzida ou lançada no comércio sem o seu consentimento (independentemente do meio utilizado: fotografia, pintura ou desenho).

    Mas o direito à imagem, enquanto direito fundamental de natureza pessoal (art.º 26.º n.º 1 da CRP), não se fica pelo disposto no Código Civil. Assim, não só ilícita será a exposição, reprodução e difusão da imagem de uma pessoa, sem o seu consentimento, como também a mera captação ou produção (até porque nunca se sabe o uso que lhe irá ser dado...).

2.1 – Limites do Direito à Imagem

    Nos termos do art.º 18.º n.º 2 da CRP, o direito à imagem admite restrições legais (nos casos expressamente previstos na própria Constituição), desde que estritamente necessárias à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. [2]

    [2Relativamente aos agentes das forças de segurança, a própria CRP, no seu art.º 270.º, admite a possibilidade de a lei estabelecer, “na estrita medida das exigências próprias das respetivas funções, restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição coletiva e à capacidade eleitoral passiva” (sublinhado nosso). Como constatamos, essa possibilidade restritiva não abrange o direito à imagem.

    Logo no art.º 79.º n.º 2 do CC, estão elencadas várias restrições a esse direito, entre elas: a notoriedade da pessoa retratada; o cargo que a mesma desempenha; exigências de polícia ou de justiça; finalidades científicas, didácticas ou culturais; quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente (desde que não resulte prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro do retratado, art.º 79.º n.º 3 do CC). 

    Encontramos, ainda, outras limitações a esse direito, v.g.: no Código de Processo Penal (art.º 167.º); na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (Medidas de Combate à Criminalidade Organizada), mais precisamente no seu art.º 6.º; ou na Lei n.º 95/2021, de 29 de Dezembro (diploma que regula a utilização e o acesso a sistemas de videovigilância).

2.2 – O direito à Imagem de Polícias Uniformizados

    Como já vimos, o direito à imagem não é um direito absoluto, constituindo, o art.º 79.º n.º 2 do CC, uma norma restritiva do mesmo. Assim sendo, nenhum cidadão (onde, obviamente, se incluem os polícias uniformizados) se pode opor a que a sua imagem incorpore uma fotografia ou um filme (desde que não resulte prejuízo para a sua honra, reputação ou simples decoro, art.º 79.º n.º 3 do CC), quando

Tal se justifique por:

  exigências de polícia (medidas conducente à prevenção dos mais diversos perigos, v. g., uma imagem captada ao abrigo da sup. cit. Lei n.º 95/2021, de 29 de Dezembro);   

 exigências de justiça (medidas necessárias para assegurar meios de prova); [3] [4]

    [3No que concerne à satisfação de exigências de justiça, na esteira do expendido no Acórdão do TRE, de 24 de Abril de 2012, proc. 932/10.8PAOLH.E1, rel. Maria Soares, deve “tratar-se de situação em que a utilização da imagem se mostre necessária ou mesmo indispensável à afirmação da justiça buscada, e num quadro em que a tutela da imagem do visado se encontre numa situação de menor valia intrínseca, ao ponto de a sua ofensa não se mostrar desproporcionada nem ofensiva (ou intoleravelmente ofensiva) do valor intrínseco da pessoa que justifica aquela tutela” (sublinhado nosso). Acórdão acedido e consultado aqui em 02/08/2022. 

    [4Na subsequência da conclusão precedente, entendemos que é totalmente desproporcionada, inter alia, a gravação de um vídeo a focar exclusivamente a imagem de um agente de autoridade uniformizado, por um cidadão que está a ser autuado. Se o objectivo é identificar aquele agente de autoridade com o propósito de reagir contra a autuação – e caso o cidadão não se contente com o nome ostentado no respectivo uniforme (embora os polícias se considerem identificados quando devidamente uniformizados) –, pode exigir a exibição da sua carteira de identificação policial. Vide, v.g, art.º 18.º n.ºs1 e 2 do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de Outubro (diploma que aprovou o estatuto profissional do pessoal com funções policiais da PSP). 

finalidades científicas, didácticas ou culturais; 

ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada: 

na de lugares públicos (neste caso, o foco central deve ser sempre o lugar público e não a imagem da pessoa fotografada ou filmada);

na de factos de interesse público (também neste caso a focagem deve incidir sobre o acontecimento de interesse público e não sobre a imagem de um determinado elemento policial); [5ou 
 
    [5Não há como negar que, em algumas ocasiões, a própria actividade policial (legitimada na prossecução do interesse público) assume-se, ela própria, como um “facto de interesse público”. Por este motivo, está legitimado o registo, vídeo ou fotográfico, de elementos policiais enquadrados, v. g., num evento desportivo, numa manifestação ou até na detenção do suspeito de um crime causador de alarme social. Mais uma vez insistimos que a focagem deve incidir sobre o facto de interesse público e não sobre a imagem de pessoas concretas. 

que hajam decorrido publicamente (e. g., quando, durante um jogo de futebol, alguém, com o intuito de focar o ambiente envolvente, acaba por captar a imagem dos policiais que aí se encontram de serviço). 

Está também legitimado o registo, vídeo ou fotográfico, de uma pessoa (desde que, claro está, não resulte prejuízo para a sua honra, reputação ou simples decoro, art.º 79.º n.º 3 do CC), quando tal se justifique: 

Pela sua notoriedade pública – que tanto pode resultar do cargo, função, profissão, etc. (v. g., a captação exclusiva da imagem do Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana, após audiência no Palácio de Belém), como de circunstâncias ocasionais (v. g., a fotografia de um agente da Policia de Segurança Pública que, heroicamente, evita a morte por afogamento de duas pessoas).

Pelo cargo que desempenhe. 

     Será que podemos incluir, aqui, um polícia uniformizado?   

    Existem pessoas (v. g., aquelas que exercem cargos políticos) que, pelo papel que desempenham na sociedade, estão sujeitas à exposição da sua imagem. Existe como que um consentimento implícito de restrição do direito à sua imagem em função do cargo exercido (com os limites impostos pelo art.º 79.º n.º 3 do CC). 

    E, embora a imagem física dessa pessoa abranja todo o seu corpo, é o rosto (em regra) que a individualiza e a torna reconhecível pelos demais (enquanto titular daquele cargo).

    Já relativamente aos polícias, embora seja também o rosto que os individualiza, é o uniforme que os identifica como tal. Não existe, pois, uma relação entre o seu rosto e a função exercida (salvo, claro, quando o polícia, por algum motivo – meritório ou não –, alcançou a notoriedade).

    Sendo assim, não obstante a natureza de serviço público da actividade policial, a imagem do polícia é muito mais do que a farda que enverga e que o identifica como tal, compreendendo algo que é reflexo da sua identidade pessoal, o seu rosto. 

    Ex positis, o agente policial tem, pois, a faculdade de recusar a captação e/ou exibição da sua imagem, em especial do seu rosto (quando ela não se enquadre nas restrições legais do seu direito). [6]
    
    [6] Em determinadas situações, o direito de reserva sobre a imagem permite garantir a segurança e protecção não só dos agentes policiais como também dos seus familiares. Como exemplo, imaginemos um agente policial, oriundo de um bairro problemático, que decide seguir a carreira policial. Visando, sobretudo, proteger os seus familiares, resolve encobrir essa actividade, exercendo-a, para isso, longe das origens. Esse objectivo poderá sair frustrado com a publicação de uma fotografia sua, uniformizado.

3 - Direito à Palavra

    O direito à palavra é, também, um direito fundamental de natureza pessoal (art.º 26.º n.º 1 da CRP). Contrariamente ao que sucede com o direito à imagem, não encontramos, no direito civil, um preceito que possa delimitar o seu conteúdo.

    Tem-se entendido, contudo, que os direitos à palavra e à imagem são direitos análogos, sendo, por isso, também aplicável, àquele, o art.º 79.º n.º 1 do CC, com as devidas adaptações. Assim, podemos concluir, desde logo, que a voz de uma pessoa também não pode ser gravada e/ou difundida sem o seu consentimento. [7]
   
    [7] Para GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (CRP Anotada, vol. I, 4.ª Edição, em anotação ao art.º 26.º n.º 1): “O direito à palavra desdobra-se, assim, em três direitos: (a) direito à voz, como atributo de personalidade, sendo ilícito, sem consentimento da pessoa, registar e divulgar a sua voz (com ressalva, é claro, do lugar em que ela foi utilizada); (b) direito às “palavras ditas”, que pretende garantir a autenticidade e o rigor da reprodução dos termos, expressões, metáforas escritas e ditas por uma pessoa; (c) direito ao auditório, ou seja, a decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a palavra. Mais uma vez, este direito sofre de compressões no caso dos discursos públicos de agentes públicos e políticos”. 

    Relativamente às restrições legais a este direito, valem as observações anteriormente feitas para o direito à imagem.

4 – Condutas Jurídico-penalmente Relevantes

    Vimos anteriormente que os direitos à imagem e à palavra gozam de tutela constitucional e civil. Analisemos, agora, a sua protecção no âmbito do direito penal. 

    Iniciámos o presente escrito narrando o sucedido num encontro de jovens («meet») no Parque das Nações. Na sequência dos incidentes reportados, um cidadão decidiu aproximar-se de agentes uniformizados (cerca de 2/3 metros), filmando-os durante algum tempo (contra a sua vontade expressa), publicando, de seguida, o vídeo na rede social «Facebook».

    Ora, analisando, desde logo, o conteúdo do art.º 79.º n.º 2 do CC (comentado supra), verificamos que esta restrição (não consentida) do direito à imagem dos agentes policiais não se encontra justificada por nenhuma das circunstâncias aí previstas.

    Nunca poderíamos considerar que a imagem captada vem “enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”, pois o principal objecto da captação é, na verdade, a imagem dos agentes policiais (em especial os seus rostos).

    Sendo assim, podemos concluir que tal situação é subsumível no art.º 199.º n.º 2 al.ªs a) [captação da imagem contra a vontade] e b) [publicação no «Facebook»] do Código Penal (CP). [8] 

    [8] Não obstante parecer óbvia esta cominação, há quem insista neste tipo de gravações e publicações e depois se indigne com o resultado…

Fonte: Google Imagens

    Quem não se recorda de um vídeo viral gravado num miradouro em Lisboa, em que um cidadão questionou um agente da PSP (filmando insistentemente a sua cara) sobre a forma como estaria a intimidar um cidadão negro, numa fase de desconfinamento em que a legislação era instável? Foi instaurado processo crime, contra o seu autor, o qual, na fase de inquérito, concordou com a suspensão provisória do mesmo, nos termos do art.º 281.º do Código de Processo Penal, durante o período de oito meses, mediante o pagamento de uma injunção de 800 euros a uma IPSS. 

    Mas será que a conduta só integra o tipo de crime do art.º 199.º n.º 2 do CP após o visado manifestar a sua vontade (expressa ou presumida) de não querer ser filmado?

    Na maioria dos casos, a filmagem abrange não só a captura de imagem, mas também de som. Assim sucedeu no caso concreto, ela abrangeu também palavras dirigidas, pelos agentes policiais, a um círculo de pessoas numericamente determinadas, logo, palavras não públicas. 

    Não obstante a supra referida analogia entre os direitos à imagem e à palavra, encontramos, no art.º 199.º do CP, duas incriminações distintas, com uma redução significativa da tutela daquele direito (à imagem) em relação a este (direito à palavra).

    Se, por um lado, como já referido, a captura da imagem de uma pessoa (por intermédio de fotografia ou vídeo) só é ilícita quando ocorre contra a sua vontade (necessita de uma manifestação de vontade), art.º 199.º n.º 2 al.ª a) do CP; por outro, a gravação da sua palavra é ilícita logo que decorra sem consentimento, art.º 199.º n.º 1 al.ª a) do CP.

    Perante o exposto, e voltando, de novo, ao caso concreto, a gravação, contendo palavras não públicas, seria desde logo ilícita porque não consentida.

5 – Prática Processual (perante colisão de direitos fundamentais)

    5.1 – Vimos que, quer a obtenção da imagem de uma pessoa contra a sua vontade, quer a gravação das suas palavras sem consentimento, são condutas jurídico-penalmente relevantes, subsumíveis respectivamente nos n.ºs 2 al.ª a e 1 al.ª a) do art.º 199.º do CP.

    Dada a actualidade do crime [flagrante delito em sentido estrito, art.º 256.º n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP)], o agente policial poderia proceder à detenção do captor da imagem ou da palavra [art.º 255.º n.º 1 al.ª a) do CPP], devendo manifestar, no respectivo Auto de Notícia, vontade inequívoca de procedimento criminal contra ele (direito de queixa), art.º 255.º n.º 3 do CPP (já que estamos perante um crime de natureza semi-pública, art.º 198.º, «ex vi» art.º 199.º n.º 3, ambos do CP).

    Relativamente a esta manifestação de vontade de procedimento criminal, no caso de estarmos perante vários agentes de autoridade, vítimas do crime, entendemos que não basta mencionar no Auto de Notícia – que apenas vai ser assinado pelo agente autuante –, que os demais desejam também procedimento criminal contra o suspeito, pois o agente autuante não pode pronunciar-se sobre direitos ou expectativas alheias sem que, para tal, esteja devidamente mandatado. Assim, recomendamos que tal manifestação de vontade ocorra de forma autónoma, por exemplo em Aditamento.

    No caso concreto, o telemóvel seria apreendido nos termos do art.º 178.º n.º 1 do CPP, enquanto instrumento relacionado com a prática de um facto ilícito típico, com conteúdo susceptível de servir a prova.

    Porém, temos que ter sempre presente que, não obstante determinada restrição de direitos, liberdades e garantias se encontrar prevista na lei, ela deve limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art.º 18.º n.º 2 da CRP).

    É que o telemóvel, hodiernamente, assume-se como um repositório de informação susceptível de revelar hábitos, gostos, ambições, orientação sexual, etc. Como tal, uma visualização não consentida pode colidir com direitos fundamentais, entre eles, o direito à reserva da intimidade da vida privada do seu titular.

    Como decorrência deste direito, deve, pois, o telemóvel ser apreendido sem visualização do seu conteúdo.

    5.2 – Agora suponhamos que um agente policial se depara com um cidadão com a câmara de telemóvel apontada a si, olhando continuamente para o ecrã. Testemunhas afirmam ter visto a imagem policial enquadrada no aparelho, não conseguindo asseverar, no entanto, se o indicador de gravação (normalmente uma luz vermelha ou as letras “REC”) ou o respectivo temporizador estavam accionados.

    Perante estes factos, ainda assim, um observador objectivo, valorando-os, ajuizaria no sentido de se convencer que o crime estaria a ser cometido. Estamos, pois, perante uma suspeita razoavelmente fundamentada, e, como tal, susceptível de integrar um Auto de Notícia. 

    De modo a confirmar essa suspeita, deveria, o agente policial, tentar obter o consentimento do visado – documentando-o por qualquer forma – para a visualização dos ficheiros de armazenamento do telemóvel  – porquanto volenti not fit injuria. [9] [10]

  [9] Este é um axioma jurídico que, numa tradução livre do original, significa que ninguém se pode queixar, em juízo, de uma ofensa consentida aos seus direitos (se livremente disponíveis). 
    [10] Hodiernamente, a apreensão do telemóvel não é garantia de que a imagem ou gravação (ilicitamente obtida) não possa ser utilizada, já que muitos aparelhos permitem que as fotografias e vídeos possam ser guardados simultaneamente e de forma automática em «clouds», v.g., no caso do «Windows Phone» o «Microsoft OneDrive». 

    Não se obtendo o consentimento, o telemóvel seria apreendido – pelos motivos acima mencionados –, sem visualização do seu conteúdo.

    Mas, como já referido anteriormente, o telemóvel assume-se, actualmente, como um repositório da mais variada informação, muita dela indispensável no dia-a-dia do seu utilizador (contactos telefónicos, «e-mails», documentos, etc).

    Tendo isto em consideração – e não obstante estarmos perante um objecto susceptível de apreensão, art.º 178.º n.º 1 do CPP –, devem ser sempre tomadas diligências no sentido de minimizar eventuais “danos” gerados pela privação do uso do telemóvel.

    Não obstante o conteúdo do art.º 183.º n.º 2 do CPP, deve ser sempre fornecida uma cópia do Auto de Apreensão ao visado, ainda que o mesmo a não tenha solicitado. Caso este se recuse a recebê-la, deverá ser elaborada certidão de recusa no próprio Auto.

    No Auto de Apreensão – que, em princípio, o visado irá ler, assinar e ficar com uma cópia –, mais precisamente em “informações complementares”, deverá mencionar-se que o possuidor do objecto apreendido foi notificado da possibilidade de requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida, nos termos do art.º 178.º n.ºs 7 e 8 do CPP. [11]

   [11] O visado poderia, neste caso, requerer o levantamento da apreensão e consequente restituição do telemóvel após eventual cópia de ficheiros tidos como relevantes para a investigação do crime indiciado.

    Este é, no entanto, um requerimento que visa modificar ou revogar a apreensão já validada pela autoridade judiciária competente (em regra o Ministério Público). Sendo assim, deve o órgão de polícia criminal, responsável pela apreensão, comunicá-la, a essa autoridade judiciária, o mais rapidamente possível (não obstante o prazo máximo de 72 horas ínsito no art.º 178.º n.º 6 do CPP), de modo a que a apreensão possa ser apreciada e validada com essa mesma celeridade.

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