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Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Senhorios NÃO podem proibir animais de companhia em casas arrendadas

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 I – Introdução 

    Ao longo dos últimos anos, os animais de companhia emergiram de uma posição tradicionalmente periférica/utilitária para se afirmarem como membros integralmente reconhecidos das unidades familiares contemporâneas.

    Este fenómeno pode ser compreendido não apenas como uma mudança no status dos animais, mas também como uma reflexão profunda sobre as necessidades emocionais e psicológicas da sociedade moderna.

    À medida que as famílias se tornam menores e as conexões sociais mais fragmentadas, os animais de estimação surgem como substitutos simbólicos das relações humanas e como partes vitais das estruturas familiares.

    Tem havido também uma crescente consciencialização dos benefícios que os animais de estimação exercem no bem-estar físico e psicológico dos seus tutores. [1] 

[1] A este propósito, vide, no blogue da “Lusíadas Saúde”, o artigo: “Animais de estimação: 5 benefícios para a saúde”.


II – Fundamentação jurídica

    Com a entrada em vigor da Lei n.º 8/2017, de 03 de Março (diploma que veio estabelecer o estatuto jurídico dos animais), os animais, enquanto seres vivos dotados de sensibilidade, passaram a ser objecto de protecção jurídica em virtude da sua própria natureza [art.º 201.º-B do Código Civil (CC)].

    Embora os animais continuem a poder ser objeto do direito de propriedade (art.º 1302.º n.º 2 do CC), nos termos do art.º 1305.º-A do CC, trata-se daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente apelidamos de “propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à autoconstrução da personalidade”. [2]

[2Vide, neste sentido, o Ac. do TRP, de 21-11-2016, proc. 3091/15.6T8GDM.P1, rel. Manuel Fernandes, acedido e consultado aqui em 05-09-2024.

    Nas palavras de Sandra Passinhas (professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra):

Muitas pessoas detêm objectos que sentem como se fossem quase parte delas próprias; estas coisas estão ligadas profundamente à sua própria personalidade porque são o meio através do qual se constroem continuamente enquanto entidades no mundo. O critério para avaliar o significado da relação de alguém com um objecto é o do tipo de dano ou sofrimento que a sua perda causa.

Neste sentido, um objecto está relacionado com a construção da personalidade de uma pessoa se a sua perda causa um dano que não pode ser reparado pela sua substituição. O oposto de ter um objecto que se torna parte da própria pessoa é ter um bem perfeitamente fungível por outro de igual valor de mercado; estes objectos têm um valor meramente instrumental para a auto-constituição pessoal.[3]

[3] InOs animais e o regime português da propriedade horizontal”. De salientar que este artigo foi publicado na Revista da Ordem dos Advogados, em Setembro de 2006, ou seja, numa altura em que os animais se incluíam ainda na noção de “coisa” do art.º 202.º n.º 1 do CC.

    Não ignoramos que o princípio da liberdade contratual, previsto no art.º 405.º do CC, confere, ao titular do direito de propriedade sobre um imóvel, a possibilidade de celebrar ou não um contrato de arrendamento (liberdade de celebração) e a possibilidade de fixar o respectivo conteúdo (liberdade de estipulação).

    Contudo, para se aferir se um contrato é conforme à lei, obviamente que não podemos esquecer a lei constitucional, pois “uma proibição, validamente estabelecida num contrato de arrendamento, segundo a lei civil, pode apresentar-se, materialmente, como violadora de direitos fundamentais do arrendatário”. [4]

[4] Cfr. Acórdão do TRP sup. cit.

    Sendo assim, uma cláusula proibitiva da colocação de animais no local arrendado terá que ser considerada inválida por coarctar o direito ao livre desenvolvimento da personalidade consagrado no art.º 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP). [5]

[5] Além disso, numa altura em que a habitação é um bem cada vez mais inacessível, uma cláusula desta natureza incita ao abandono de animais de companhia (pois a generalidade dos centros de recolha oficiais e demais abrigos estão totalmente preenchidos), desrespeitando também os princípios fundamentais para o bem-estar dos animais (vide art.º 3.º do Decreto n.º 13/93, de 13 de Abril, diploma que aprovou a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia).

    Como afirmou a Juíza de Direito, Margarida de Menezes Leitão [6], ninguém duvidaria “que seria ilícito o contrato de arrendamento proibir o arrendatário de casar, constitui uma união de facto, ter filhos ou adoptar crianças. Parece, por isso, que argumento de identidade de razão não se poderá proibir um inquilino de ter animais no locado, enquanto se contiver dentro dos limites legais”.

[6] “Os animais de companhia e o arrendamento para habitaçãoin eBooks do Centro de Estudos Judiciários.

    Considerando que, nos termos do art.º 1071.º do CC, “os arrendatários estão sujeitos às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis”, desde logo, quando ao número máximo de animais, um arrendatário pode alojar “até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais”, cfr. art.º 3.º n.º 2 do Decreto-lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro. 

    E, estando perante fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, só o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no parágrafo anterior (art.º 3.º n.º 3 do Decreto-lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro), não podendo, contudo, na nossa opinião, excluí-los totalmente. [7]

[7] Não podemos esquecer que o Decreto-lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, tem como objectivo a “Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses”. Sendo assim, parece-nos inconstitucional a norma do art.º 3.º n.º 3 do Decreto-lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro (por violação do art.º 26.º n.º 1 da CRP), quando interpretada no sentido de que o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no n.º 2 (do mesmo diploma legal), não havendo riscos hígio-sanitários relativamente à conspurcação ambiental e doenças transmissíveis ao homem. Também não podemos esquecer que, mesmo que a redução do número de animais tenha sido aprovada por unanimidade dos condóminos, no futuro, essa decisão pode afectar quem não teve oportunidade de se pronunciar sobre ela ou impugná-la (adquirente de uma das fracções autónomas ou um arrendatário).

    O que acabámos de defender não prejudica o direito de propriedade sobre a fracção autónoma e muito menos afecta as relações de vizinhança.

    Relativamente à possibilidade de os animais danificarem/destruírem a propriedade, estabelece, o art.º 1043.º n.º 1 do CC, que “o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização”.

    Por precaução, o senhorio pode exigir o pagamento de uma caução fixada nos termos do art.º 1076.º n.º 2 do CC (que é aquilo que já usualmente acontece), não podendo, contudo, aumentar o valor da renda em montante não superior a 2% em relação à última renda praticada, para o mesmo imóvel, durante os últimos cinco anos (salvo se a última renda era inferior aos limites previstos na tabela geral de limites por tipologia, de acordo com o concelho onde se localiza o imóvel).

    Além disso, o senhorio tem o direito de verificar o estado de conservação do imóvel e de proceder ao seu exame, cfr. art.º 1038.º al.ª b) do Código Civil. [8] 

[8] Contudo, tal prerrogativa só pode ser exercida mediante aviso prévio e deve ser conduzida de forma discreta e não intrusiva. A inspeção deverá restringir-se exclusivamente aos aspectos relacionados com a integridade do imóvel, sem excessos ou recorrência de visitas que possam configurar um abuso de direito.

    Se o senhorio tiver receio de que a presença de animais no espaço arrendado pode levar à violação das regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio, deve recordar-se que tal constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento, cfr. art.º 1083.º n.º 2 al.ª a) do CC.

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III – Considerações finais

    Perante todo o exposto, entendemos que os cidadãos que possuem animais de companhia não podem ser alvo de discriminação no acesso ao arrendamento, não existindo fundamento legal nem ético para que tal seja permitido.

    Tendo, os animais, um valor pessoalmente constitutivo para a vida familiar, uma cláusula, no contrato de arrendamento, que proíba expressamente a sua permanência no local arrendado, deve considerar-se não escrita (ou seja, deve ser declarada como inexistente). Assim decidiu, e bem, o Tribunal da Relação do Porto, sup. cit.

    Não obstante tudo isto, é evidente que, na prática, o senhorio, sendo o proprietário do imóvel, só o arrenda a quem quiser (princípio da liberdade contratual).

    E se o potencial inquilino mencionar que possui animais de estimação, nada obsta que o senhorio opte por arrendar o imóvel a outro interessado, sem ter que revelar o verdadeiro motivo.

    Perante uma clausula proibitiva que deve ser entendida como inexistente, o inquilino pode colocar animais de companhia no local arrendado (até ao limite máximo legal ou previsto no regulamento de condomínio), mas arrisca-se (caso venha a ser descoberto), a que, terminado o prazo do contrato de arrendamento, o senhorio se oponha à sua renovação [9(salvo se as partes afastaram desde logo a sua renovação automática, cfr. art.º 1096.º n.º 1 do CC).  

[9] Ter em atenção, contudo, que, nos termos do art.º 1097.º n.ºs 3 e 4 do CC, “a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data” – ou seja, o inquilino tem sempre direito a permanecer no locado pelo menos três anos –, excepto se o senhorio ou os seus descendentes em 1.º grau necessitarem da habitação.


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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

“Tribunal anula multa a pedreiro que foi fiscalizado por casal de polícias” – Quid Juris?

 

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    Conforme foi noticiado há uns dias atrás, pelo JN, “o Tribunal da Relação de Évora anulou uma multa de 1200 euros aplicada a um pedreiro que tinha sido apanhado a conduzir quando estava proibido de o fazer. A anulação da pena aconteceu após o homem, de 39 anos, se ter queixado que nunca podia ter sido intercetado e fiscalizado por dois agentes da PSP que eram casados entre si”.

    Ora, nos termos do art.º 8.º n.º 2 do Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública (PSP), aprovado pelo Decreto-lei n.º 243/2015, de 19 de Outubro, “(o) regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal (…)

    Sendo assim, por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, podemos concluir que, enquanto órgãos de polícia criminal, os polícias “que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges (n)ão podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo” [art.º 39.º n.º 3 do Código de Processo Penal (CPP)].

    Se tal suceder, “os actos praticados por” polícia/órgão de polícia criminal impedido “são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo” (art.º 41.º n.º 3 do CPP).

    Não obstante o exposto, perante detenções em flagrante delito, em que os dois polícias intervenientes (autuante e testemunha) eram cônjuges, vários juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Évora assumiram posições distintas, a saber:

1.ª Posição – Nulidade insanável do acto processual praticado (lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal) [1]

[1] Neste sentido, v. g.:
Ac. do TRE, de 04 de Junho de 2024, proc. n.º 514/21.9PAVRS.E1, rel. Maria Perquilhas (prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro); e
Ac. do TRE, de 25 de Maio de 2023, proc. n.º 463/22.3PAVRS.E1, rel. Gomes de Sousa [prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353.º do Código Penal (CP)].

    Em suma, os juízes desembargadores entenderam que o acto processual praticado (elaboração do auto de notícia e subsequente depoimento testemunhal) é inválido, por não poder ser repetido utilmente e afectar gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade.

    E, estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade (art.º 118.º n.º 1 do CPP), a nulidade insanável cominada (art.º 41.º n.º 3 e corpo do art.º 119.º, ambos do CPP) impede a repetição do ato nulo.


2.ª Posição – Validade do “auto de notícia” após expurgada a referência à prova testemunhal e afastada a sua audição na audiência de discussão e julgamento. [2]

[2] Neste sentido, et. al.:
Ac. do TRE, de 18 de Junho de 2024, proc. 142/23.4PAVRS.E1, rel. Beatriz Borges (prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º n.º 1 do CP).
Ac. do TRE, de 07 de Maio de 2024, proc. 324/22.6PAVRS.E1, rel. Jorge Antunes (prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º n.º 1 do CP;
Ac. do TRE, de 07 de Maio de 2024, proc. 500/21.9PAVRS.E1, rel. Maria Cortes (prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro); e
Ac. do TRE, de 06 de Fevereiro de 2024, proc. 309/23.5PAVRS.E1, rel. Margarida Bacelar (prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º n.º 1 do CP).

    Da leitura dos acórdãos sup. cit. podemos retirar as seguintes conclusões:

    Da conjugação do art.º 8.º n.º 2 do Decreto-lei n.º 243/2015, de 19 de Outubro, com o art.º 39.º n.º 3 do CPP, resulta que o impedimento subsiste limitado ao exercício da função policial, e nela não se inclui a qualidade de testemunha pois que, qualquer cidadão, polícia ou não, a pode exercer.

    Além disso, não podemos esquecer que a nulidade prevista no art.º 41.º n.º 3 do CPP é uma nulidade atípica, podendo ser sanada em algumas situações específicas, a saber:

quando os actos praticados pelos polícias/órgãos de polícia criminal não poderem ser repetidos utilmente; e

se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.

    Se, por um lado, a elaboração do auto de notícia é irrepetível, em todos os casos mencionados, os atos praticados pelos dois agentes da PSP não surgem como prejudiciais para a justiça da decisão do processo, já que o polícia indicado como testemunha não chegou a praticar qualquer acto no processo, pois não exerceu uma ação propiamente dita, limitando-se tão só a observar uma ação de fiscalização rodoviária.

    E o auto de notícia por detenção seria válido mesmo que dele não constasse a indicação de qualquer testemunha [3], até porque, nos crimes em causa, a prova é essencialmente documental – no crime de condução de veículo em estado de embriaguez a prova (de cariz quase pericial) é realizada através do resultado do exame de pesquisa de álcool no ar expirado efetuado por alcoolímetro ou análise de sangue – o que torna a indicada prova testemunhal, eventualmente nula, despicienda.

[3] O art.º 243.º do CPP não enuncia causas específicas de nulidade do auto de notícia.

    Sendo assim, a nulidade processual mostrou-se sanada com a expurgação da referência à prova testemunhal do auto de notícia e com o afastamento da audição do polícia indicado no auto de notícia como testemunha, aproveitando-se o auto de notícia, na audiência de discussão e julgamento, na parte subsistente.

    Subscrevemos claramente a 2.ª posição. E vocês?


terça-feira, 18 de junho de 2024

Crimes contra animais de companhia – gestão do local do crime

 

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    Como sabemos, os crimes contra animais de companhia [ps. e ps. pelos art.ºs 387.º e 388.º do Código Penal (CP) Português] foram aditados pela Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto, que entrou em vigor no dia 1 de Outubro de 2014.

    Consultando o Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça (SIEJ), verificamos que, desde a sua entrada em vigor até ao final do ano de 2023, foram registados, pelas autoridades policiais, 16.455 crimes contra animais de companhia.


    Porém, ao consultarmos as condenações nos tribunais judiciais de 1.ª instância, verificamos que entre 2015 e 2022 houve apenas 562 condenações, ou seja, dos casos registados pelas autoridades, apenas cerca de 3,84% resultaram em condenação.


    Entre os motivos que poderão justificar esta percentagem tão reduzida, estará certamente a falta de preservação imediata e meticulosa da prova no local do crime. 

    É fundamental reconhecer que a primeira intervenção dos órgãos de polícia criminal (OPC), na cena do crime, é um momento crucial para o sucesso da investigação. Por este motivo, e sem a pretensão de exaurir o tema ou de oferecer uma versão definitiva, proponho alguns procedimentos a adoptar no caso em que os OPC se deparem com:

A) Morte de animal de companhia [1] [2]                                                                              
[1] Quer seja morte dolosa ou morte resultante dos maus tratos físicos ou do abandono. 
[2] Embora o crime de morte e maus tratos de animais de companhia, p. e p. pelo art.º 387.º do CP, contenha um tipo doloso, não podendo ser punido a título negligente (cfr. art.º 13.º do CP), sugerimos os seguintes procedimentos também para condutas aparentemente negligentes, v. g., morte de um animal de companhia por atropelamento.

No caso de atropelamento (ainda que negligente), quem atropela fica investido de um especial dever de garante, por ingerência, resultante da sua conduta. Assim, na eventualidade de o animal não morrer com o embate, quem atropela, fica vinculado ao dever jurídico de agir, devendo adoptar medidas adequadas a evitar a morte do animal.

Se, e. g., um animal de companhia não morre imediatamente após o impacto, mas devido aos coágulos sanguíneos que lhe bloquearam as vias aéreas (por não ter sido socorrido atempadamente), quem atropela comete o crime de morte e maus tratos de animal de companhia por omissão, nos termos dos art.ºs 10.º n.ºs 1 e 2, e 387.º n.º 1 do CP.

Só assim não seria, se fosse evidente, ou pelo menos muito provável que, mesmo com a conduta adequada, o animal teria morrido na mesma (neste caso, o comportamento lícito alternativo tornaria irrelevante a omissão da conduta adequada). Para verificação do nexo de causalidade entre a omissão da conduta devida e o resultado morte (ou a inevitabilidade do resultado) é importante um relatório de necropsia.

 isolamento e delimitação (v. g., com fita de interdição policial) dos locais que possam conter vestígios do crime, proibindo, se necessário a entrada ou trânsito de pessoas naqueles locais [art.º 171.º n.º 2, ex vi art.º 249.º n.º 2 al.ª a), ambos do Código de Processo Penal (CPP)];

 presença imediata do médico veterinário municipal para confirmação do óbito do animal e realização de exame sumário ao hábito externo;

● reportagem fotográfica precisa e minuciosa (do espaço físico e do animal, incluindo os vestígios sinalizados); [3]

[3] O ideal seria que as câmaras fotográficas possuíssem tecnologia RAW ou HASH como garantia de autenticidade da imagem e do processo de arquivamento.

acondicionamento do animal, selagem hermética, e etiquetagem do invólucro de transporte (o processo deve ficar registado nos autos como garantia de integridade e inalterabilidade da prova);

 preservação de prova / medidas cautelares e de polícia;

Pode incluir:

 recolha de resíduos de disparo de arma de fogo; de vómito ou isco em caso de envenenamento; de vestígios lofoscópicos; etc;

 a obrigação de algumas pessoas permanecerem no local do crime (se necessário com o auxílio da força física) caso a sua presença seja indispensável [art.º 173.º n.º 1, ex vi art.º 249.º n.º 2 al.ª a), ambos do CPP];

→ identificação de suspeitos, art.º 250.º do CPP;

 colheita de informações úteis relativas ao crime, cfr. art.ºs 249.º n.º 2 al.ª b) e 250.º n.º 8, ambos do CPP;

→ apreensão de objectos nos termos do art.º 178.º n.º 1, ex vi art.º 249.º n.º 2 al.ª c), ambos do CPP (sem esquecer a sujeição a validação no prazo máximo de 72 horas);

 revistas e buscas, art.º 251.º n.º 1 al.ª a) do CPP.

 transporte do cadáver para local de preservação e armazenamento (arca frigorífica); ou

 contacto imediato com o magistrado do Ministério Público para determinação da necropsia. Neste caso, é efectuado o transporte imediato para o local onde a necropsia vai ser realizada (v. g., Faculdade de Medicina Veterinária), acompanhado de cópia do auto de notícia e do despacho que determinou. [4]

[4Qualquer transporte (seja para o local de preservação e armazenamento, seja para o local da necropsia) deve ficar devidamente documentado (quem transportou, a data e a hora do transporte e as condições em que a prova foi mantida durante o transporte).


Cadeia de custódia

    Como já deixámos transparecer, também nos crimes contra animais de companhia é fundamental assegurar a cadeia de custódia da prova através de procedimentos rigorosamente estabelecidos para assegurar a integridade, a autenticidade e a validade das provas desde o momento de sua recolha até sua apresentação em juízo.

    Este controle meticuloso é essencial para garantir que as provas permaneçam imaculadas, sem qualquer tipo de adulteração, contaminação ou manipulação, o que poderia comprometer os princípios constitucionais da busca da verdade material e da realização da justiça.


B) Maus tratos de animal de companhia (sem o resultado morte) e abandono

● reportagem fotográfica do espaço físico (se for o próprio alojamento do animal, deve incluir os equipamentos de alimentação e abeberamento), do animal e de eventuais vestígios sinalizados [recomendam-se pelos menos 5 fotografias ao animal (vistas lateral direita e esquerda, frontal, rectaguarda e superior, para evidenciar eventual magreza); [5]

[5] No caso de a cena do crime ser o próprio alojamento do animal, deve-se descrevê-lo, com alguma minúcia [referindo qual a sua natureza (v. g., jaula, corrente), dimensão, grau de protecção face a condições climáticas adversas, ventilação, condições de higiene, se possui um local seco e limpo para o animal descansar, etc.).

No caso de abandono, é importante também descrever onde concretamente o animal foi encontrado (junto a uma associação zoófila, numa varanda, num terreno isolado, dentro do veículo, etc.).

 preservação de prova / medidas cautelares e de polícia [6]

[6] Pode incluir todas as medidas indicadas na secção anterior para os casos de morte. Destacamos aqui a colheita de informações úteis relativas ao crime [cfr. art.ºs 249.º n.º 2 al.ª b)250.º n.º 8, ambos do CPP], sobretudo no crime de abandono, dada a sua importância no apuramento das circunstâncias em que o animal foi abandonado (descrição da viatura que o transportou, da pessoa que o abandonou, etc.) e na concretização do perigos concretos (para a alimentação do animal e prestação dos cuidados que lhe são devidos, e para a sua vida) exigidos pelo art.º 388.º do CP.

Não podemos esquecer que, havendo perigo evidente para a vida do animal (v. g., animal com golpe de calor causado pelo calor extremo no interior de um veículo) ou perigo declarado pelo médico veterinário, as autoridades policiais estão legitimadas, ao abrigo do “estado de necessidade” (art.º 339.º n.º 1 do Código Civil), para ultrapassar obstáculos (v. g., quebrar o vidro de uma viatura), de modo a evitar que o perigo se transforme em dano efectivo.

Em casos menos urgentes, mas devidamente fundamentados, pode ser determinada a realização de busca, incluindo domiciliária, nos termos dos art.ºs 174.º n.º 2 e 177.º n.º 1 do CPP). A busca (não domiciliária) pode partir da iniciativa do próprio OPC quando haja flagrante delito e consequente detenção [art.ºs 174.º n.º 5 al.ª c), 255.º n.º 1 al.ª a) e 256.º n.ºs 1 e 2, todos do CPP].

● presença do médico veterinário municipal para realização de exame directo ao estado do animal (verificando, inter alia: existência de lesões compatíveis com traumas não acidentais, condição física, peso, características, vacinação, doenças, infecções, parasitas, existência de transponder); [7]

[7] O Ministério Público, tendo em vista a dedução da acusação, poderá solicitar um novo exame médico-veterinário para apurar a duração da doença e/ou do tratamento, e se houve alguma sequela ou consequência física permanente.

 Nos casos em que são evidentes os maus tratos:

 apreensão do animal; com

 termo de entrega para assistência médico veterinária, ou

 termo de entrega e nomeação de fiel depositário para acolhimento (em centro de recolha oficial ou em associação zoófila), cfr. art.º 178.º n.º 1, ex vi art.º 249.º n.º 2 al.ª c), ambos do CPP;

 sujeitar a apreensão a validação (art.º 178.º n.º 6 do CPP);

 “requerer”, desde logo, ao Ministério Público, que, após a assistência médico veterinária (caso ela exista), ordene a afectação do animal (dada a sua natureza perecível) a uma finalidade socialmente útil, nomeadamente a adopção por pessoa idónea, nos termos do art.º 185.º n.º 1 do Código de Processo Penal, cjg. com art.º 201.º-D do Código Civil. [8]

[8Isto porque o animal apreendido carece de cuidados regulares que favoreçam o seu desenvolvimento e uma vida adequada à sua espécie e sensibilidade (o que é incompatível com a apreensão duradoura à ordem de um processo penal).

 No caso abandono [seja ele criminal ou contraordenacional, art.º 68.º n.º 2 al.ª c) do Decreto-lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro], existe perda de posse do titular do animal e a consequente possibilidade de aquisição, por ocupação, por parte de terceiros, cfr. art.ºs 201.º-D, 1267.º n.º 1 al.ª a)1318.º, todos do Código Civil.

Havendo fortes indícios de abandono (criminal ou contraordenacional), entendemos que os titulares dos Centros de Recolha Oficial (CRO) não carecem de esperar que, no período de 15 dias, o animal não seja reclamado pelo seu proprietário, nos termos do art.º 11.º n.º 5 do Decreto-lei n.º 82/2019, de 27 de Junho, e do art.º 8.º n.º 4 da Portaria n.º 146/2017, de 26 de Abril (já que este prazo se traduz numa presunção legal de abandono e este já foi confirmado factualmente), podendo, desde logo, registá-lo em seu nome no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC).                                                                          

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quinta-feira, 2 de maio de 2024

«Pai que batia e chamava de "porca" à filha de quatro anos vence recurso e é ilibado»

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    Nos últimos dias, vários meios de comunicação social divulgaram que um pai que batia na filha de quatro anos e lhe chamava de "porca" venceu o recurso no Tribunal da Relação de Évora. O homem de 36 anos – que tinha sido condenado a dois anos de pena suspensa pelo Tribunal de Sesimbra e a pagar 1250 euros de indemnização à vítima – foi (…) ilibado, por os juízes desembargadores terem entendido que os comportamentos do pai estavam abrangidos pelo "poder/dever de correção".

    Estes são alguns dos factos dados como provados em primeira instância:

O arguido sempre teve um comportamento agressivo e austero com a sua filha menor, sendo que, quando esta comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe porca;

Se, por qualquer motivo, a menor entrasse em casa e não trocasse os sapatos da rua pelos de casa, o arguido começava aos gritos com ela e dizia-lhe “vais levar nas trombas, porca”;

No dia 17 de Junho de 2021, em virtude de a menor ter saído para a rua, pois tinha visto a avó no exterior, o arguido desferiu uma estalada na cara da menor.

    O Tribunal da Relação de Évora, doravante apenas TRE (vide acórdão de 20 de Fevereiro de 2024, proc. n.º 471/21.1GBSSB.E2, rel. Maria Clara Figueiredo), decidiu, inter alia, que a sentença do Tribunal Judicial de Sesimbra, no que concerne à prova dos factos:

sustentou-se quase exclusivamente no depoimento da ofendida, ao qual foi atribuída total credibilidade, não o confrontado com as restantes provas produzidas em sentido contrário, mormente com as declarações do arguido;

nada consignou, na motivação do juízo probatório, relativamente à apreciação crítica das declarações do arguido, não afirmando sequer que decidiu não lhes atribuir credibilidade e, menos ainda, por que razão o fez;

não foi feita qualquer referência ao depoimento de uma testemunha (educadora da menor).

    Segundo o TRE, o tribunal recorrido usou “em excesso o seu subjetivismo na apreciação de meios de prova de carácter pessoal" (concretamente os depoimentos das testemunhas e as declarações do arguido).

    A sentença não continha “as referências mínimas relativamente à valoração que foi feita das provas produzidas”, e não permitia a reconstituição “do percurso lógico seguido pelo julgador subjacente à decisão que em concreto incidiu sobre cada um dos factos relevantes tidos por provados”.

    Sendo assim, “não tendo sido valoradas e apreciadas criticamente as provas” apresentadas pelo arguido, persistindo a dúvida sobre os factos (dados como provados em 1.ª instância) e dando aplicação ao princípio do in dubio pro reo, tornou-se imprescindível considerar "tais factos como não provados", o que determinou, naturalmente:

a absolvição do arguido da prática do crime de violência doméstica sobre a sua filha, e, por inerência;

a revogação da sentença recorrida na parte em que o condenou no pagamento de uma indemnização àquela (cfr. art.º 82.º-A do CPP).

    Mas o TRE não se ficou por aí, acrescentando, ainda, que, mesmo que tivessem resultado provados os factos que decidiu conduzir aos factos não provados, o crime de violência doméstica não se encontraria preenchido, já que, e em suma:

o propósito que o arguido visou alcançar com tais condutas foi pedagógico e situou-se ainda dentro do dever de correção [independentemente dos juízos valorativos que se possam fazer acerca da adequação da linguagem utilizada ou dos métodos educacionais postos em prática];

no que diz respeito à bofetada, a atitude do arguido parece ter sido impulsiva e revestido caráter pedagógico, já que a criança colocou-se em perigo quando saiu de casa e correu para a estrada para ir ter com a avó.

o mesmo parece ter sucedido nas expressões supostamente utilizadas pelo arguido, tendo o próprio assumido que chamou “porca” à criança “em alguma ocasiões, ocorridas durante as refeições, nas quais a menor atirava comida ao ar, com o propósito de lhe transmitir regras de higiene e de educação”.

    Sendo assim, as condutas imputadas ao arguido, na sentença, preenchem as condições indicadas pela maioria da doutrina, para que se considere estar em presença da concretização dos poderes/deveres parentais a que se reportam os art.ºs 1878.º e 1885.º do Código Civil, porquanto:

"quer as expressões dirigidas à menor, quer a bofetada – contextualizada nos termos sobreditos e que não terá deixado quaisquer sequelas físicas (designadamente vermelhidão) ou psicológicas – passam os crivos da moderação e da proporcionalidade".

    Segundo o TRE, tais condutas, abrangidas pelo poder/dever de correção, não estariam a coberto da causa de justificação prevista no art.º 31.º n.ºs 1 e 2 al.ª b) do CP – como vem sendo entendido pela jurisprudência que julgamos maioritária [1] – pois nem chegariam a preencher o tipo de qualquer norma penal.



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terça-feira, 23 de abril de 2024

Jurisprudência destacada: crime de furto / espaço fechado

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    Consideremos o seguinte caso prático fictício:

No dia 14 de Abril de 2024, cerca das 09H00, o António e o Carlos dirigiram-se a um estaleiro de obras, sito no Monte da Caparica, em Almada, com o objectivo de lá entrarem e se apropriarem de todos os objectos de interesse que pudessem transportar.

Para acederem ao interior do estaleiro, escalaram o muro envolvente, com cerca de 2 metros de altura.

António e Carlos conseguiram apropriar-se de vários objectos, num valor total de cerca de 300 euros.

    A conduta do António e do Carlos preenche a tipicidade do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do Código Penal, [1] doravante apenas CP), ou apenas do crime de furto (simples), p. e p. pelo art.º 203.º n.º 1 do CP [2]?

[1] O art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do CP, estabelece que:
Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
(…);
e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas; (…);
é punido com pena de prisão de dois a oito anos”.

Podemos encontrar a definição legal de “arrombamento”, “escalamento” e de “chaves falsas” no art.º 202.º do CP, respectivamente nas suas al.ªs d), e) e f).

[2] Já o art.º 203.º n.º 1, do CP, prescreve que: “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

    No que a esta questão concerne, podemos desde já adiantar que as duas qualificações jurídicas têm sido defendidas pela jurisprudência.

    1.ª ► Furto qualificado

    Há quem entenda que a conjugação alternativa “ou”, que antecede [no art.º 204.º n.º 2 al.ª e) do CP] “outro espaço fechado”, leva a concluir que “qualquer espaço fechado, por si só e desde que devidamente cerrado, integrará a concepção da norma, pelo que a introdução no mesmo, para furtar, qualifica o crime; e ainda mais, se a introdução for efectuada com arrombamento, ou escalamento”. Neste sentido, v. g., o Acórdão do TRP, de 21/02/2018, proc. n.º 784/14.9GBVNG.P1), rel. Cravo Roxo.

    Sendo assim, no nosso caso prático – seguindo este entendimento, com o qual não concordamos –, encontrando-se o estaleiro totalmente rodeado por um muro com cerca de 2 metros de altura, é, de facto, um “espaço fechado”.

    E, tendo o António e o Carlos escalado esse muro e furtado vários objectos (num valor total de cerca de 300 euros), as suas condutas preenchem, em coautoria, o tipo de crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do CP.

    2.ª ► Furto simples

    Seguimos este entendimento, por entendermos que melhor traduz e patenteia a ratio legis, e que se traduz no seguinte:

    Para que um “espaço fechado” funcione como “qualificativa do crime de furto, nos termos do art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do CP), é essencial que este esteja conexionado com uma habitação”, estabelecimento comercial ou industrial. “Se não existir essa relação de dependência ou enlace estrutural, o espaço fechado fica fora do âmbito de proteção da norma”. Neste sentido, inter alia, o Acórdão do TRC, de 11/10/2023, proc. n.º 417/18.4PCCBR.C1, rel. Ana Cardoso. [3]

[3] Conclui-se, neste aresto, que o conceito de “espaço fechado” tem de ser interpretado e conjugado com as definições legais de “penetrar por arrombamento ou escalamento”, pois estas tutelam apenas as “casas” ou “lugares fechados delas dependentes”. Sendo assim, no caso do art.º 204.º n.º 2 al.ª e), do CP, o “espaço fechado” corresponderá ao lugar fechado dependente de uma habitação, estabelecimento comercial ou industrial.

Com base neste entendimento, o “espaço fechado”, tipicamente agravante, para efeitos do art.º 204.º n.º 1 al.ª f), do CP – por não ter associado o “arrombamento” nem o “escalamento” –, «identifica-se com a noção de “espaço vedado ao público” do artigo 191.º do CP, sendo assim fechado todo o espaço que se encontra vedado ou cercado e que não é de acesso livre».

    A introdução num “espaço fechado”, per se, não representa um dano acrescido que justifique um agravamento tão significativo da moldura penal abstracta (pena de prisão de 2 a 8 anos, em vez de pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, no caso do furto simples).

    No caso do art.º 204.º n.º 2 al.ª e) do CP (furto qualificado), o que verdadeiramente reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e o estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que, para este efeito, incluem os espaços fechados limítrofes, anexos ou a eles agregados.

    “Há um reduto de mais-valias ligado ao espaço físico dedicado à habitação e ao estabelecimento comercial ou industrial e suas dependências contíguas e fechadas que o legislador entendeu ser merecedor de uma tutela acrescida do bem jurídico”. Vide Acórdão do TRP, de 11/07/2012, proc. 774/11.3GAVNF.P1, rel. Artur Oliveira.

    Sendo assim, no nosso caso prático, ainda que o António e o Carlos tenham escalado o muro e furtado vários objectos (num valor total de cerca de 300 euros), tratando-se de um estaleiro de obras, sem qualquer conexão com uma habitação, estabelecimento comercial ou industrial, entendemos que as suas condutas preenchem, em coautoria, apenas o tipo de crime de furto (simples), p. e p. pelo art.º 203.º n.º 1, do CP.

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