Para melhor orientar o leitor ao
longo do percurso intelectual proposto por este texto, considerou-se oportuno
iniciar a obra com um breve índice.
Este índice não se limita a servir de guia, mas constitui um convite à reflexão
estruturada, garantindo que cada argumento e consideração encontre o seu lugar
no panorama geral da análise.
1 – Introdução.
2 – Enquadramento jurídico.
2.1 – Imagem enquanto dado
pessoal.
2.1.1 – Os sistemas de
videovigilância instalados em veículos são abrangidos pelo disposto no art.º
19.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto?
2.1.2 – Uma câmara de videovigilância que capte exclusivamente o
interior de um veículo enquadra-se na “isenção doméstica”, não lhe sendo aplicável
o art.º 19.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto?
2.1.3 – O art.º 19.º da Lei n.º
58/2019, de 8 de Agosto, é igualmente aplicável aos veículos dotados, de
origem, de sistemas de videovigilância integrados?
2.1.4 – Existência de “interesse
legítimo” para a instalação/utilização de sistema de videovigilância em veículo.
2.1.4.1 – E se houver oposição de
terceiros?
3 – Admissibilidade de gravações
obtidas ilegalmente como prova em processo penal
1 – Introdução
Nos últimos anos, tem-se
verificado um aumento significativo no uso de câmaras instaladas em veículos [1],
tanto por iniciativa dos condutores como por parte dos próprios fabricantes.
[1] Por “veículo” entendemos qualquer meio de
transporte capaz de circular na via pública, motorizado ou não, destinado ao
transporte de pessoas, animais ou mercadorias, ou a fins de trabalho
especializado.
Tal uso levanta, contudo,
questões relevantes de ordem jurídica e ética, designadamente quanto à proteção
de dados pessoais, à admissibilidade das gravações como meio de prova e ao
equilíbrio entre o direito à segurança e os direitos à imagem e à palavra.
Estamos, pois, perante uma
realidade em que a tecnologia não apenas redefine hábitos sociais, mas também
transforma profundamente a experiência quotidiana. Essa transformação, embora
subtil, tem repercussões significativas na esfera das liberdades individuais,
frequentemente comprimidas em nome da segurança pública e da necessidade de
maior vigilância e controlo social.
2
– Enquadramento jurídico
A utilização de câmaras em veículos pode suscitar potenciais colisões com os direitos de personalidade de terceiros, nomeadamente com os direitos à imagem e à palavra, ambos dotados de dignidade e protecção constitucional,
art.º 26.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Em termos infraconstitucionais,
os direitos à imagem e à palavra gozam de tutela penal. No que respeita ao
primeiro, dispõe o art.º 199.º n.º 1, do Código Penal (CP) que é punível [com
pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias] a conduta de quem, sem
consentimento:
a) Grava palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao
público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) Utiliza ou permite que se
utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente
produzidas.
Quanto ao direito à imagem, nos
termos do art.º 199.º n.º 2, do CP, é punível a conduta de quem, contra a
vontade (expressa ou presumida):
a) Fotografa ou filma outra
pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) Utiliza ou permite que se
utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que
licitamente obtidos.
Este art.º 199.º do CP deve ser,
contudo, conjugado com o art.º 79.º n.º 2, do Código Civil (CC), que estabelece
o seguinte:
“Não é necessário o consentimento da pessoa retratada” (quer para a
recolha, quer para a utilização da sua imagem) “quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe,
exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou
culturais, ou quando a reprodução da imagem” (apenas a recolha da imagem,
não a sua utilização) “vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de
factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”. [2] [3] [4]
[2] Sublinhado e acrescentos entre parêntesis nossos.
[3] Os direitos à
palavra e à imagem são direitos análogos, sendo, por isso, também aplicável,
àquele, o art.º 79.º n.º 2, do CC, com as devidas adaptações.
[4] Sobre o
conteúdo do art.º 79.º n.º 2, do CC, sugerimos a leitura do nosso artigo
denominado: “A Polícia e o Direito à Imagem/Palavra”.
Sendo assim, por exemplo, nos
casos em que o foco central da gravação recai sobre um lugar público, sobre um facto de interesse público
ou sobre um acontecimento que decorre publicamente (e não sobre a imagem ou a
palavra de alguém), em princípio não se encontra preenchido o tipo de
crime previsto no art.º 199.º n.º 2 al.ª a), do CP (relativo à recolha da
imagem), mas tal não significa que não se possa preencher posteriormente o tipo
de crime previsto na al.ª b) do mesmo n.º 2 (referente à utilização dessa
imagem). [5] [6]
[5] Recordamos, mais uma vez, que a segunda parte do art.º 79.º n.º 2, do CC, diz
respeito apenas à reprodução da imagem e não à sua utilização posterior.
[6] Sobre esta atipicidade, sugerimos:
Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal,
Parte Especial, Tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora,
1999, págs. 833 e 834.
2.1 – Imagem enquanto dado
pessoal
Apesar da conclusão alcançada na secção anterior, importa ter presente
que a imagem de uma pessoa é um dado pessoal, na medida em que permite
identificar ou tornar identificável uma pessoa singular. [7]
[7] Podemos
encontrar a definição de “dados pessoais” no art.º 4.º 1) do Regulamento Geral
sobre a Proteção de Dados (RGPD) - Regulamento (UE) do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 27 de Abril de 2016.
O mesmo ocorre relativamente à palavra
de uma pessoa e à imagem de certos objetos, cuja informação é susceptível de
ser atribuída a um indivíduo, como sucede, por exemplo, no caso de uma matrícula
de veículo, que permite identificar o respetivo proprietário.
No domínio da proteção de dados
em território nacional, a Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto (Lei da Proteção de
Dados Pessoais), veio assegurar a harmonização do quadro jurídico nacional com
o RGPD (referido na nota n.º [7]).
Esta Lei, no seu art.º 19.º,
epigrafado “Videovigilância”, estabelece o seguinte:
1 - Sem prejuízo das disposições
legais específicas que imponham a sua utilização, nomeadamente por razões de
segurança pública, os sistemas de videovigilância cuja finalidade seja a
proteção de pessoas e bens asseguram os requisitos previstos no artigo 31.º
da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio [8], com os limites
definidos no número seguinte.
2 - As câmaras não podem
incidir sobre:
a) Vias públicas, propriedades
limítrofes ou outros locais que não sejam do domínio exclusivo do responsável
(…);
(…)
4 - Nos casos em que é admitida a
videovigilância, é proibida a
captação de som, exceto no período em que as instalações vigiadas
estejam encerradas ou mediante autorização prévia da CNPD.» [9]
[8] Estes requisitos
são:
→ As gravações de imagem obtidas pelos sistemas videovigilância
devem ser conservadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados
desde a respetiva captação, findo o qual são destruídas, no prazo máximo de 48
horas;
→ Todas as pessoas que tenham acesso às gravações devem sobre as
mesmas guardar sigilo, sob pena de procedimento criminal;
→ É proibida a cessão ou cópia
das gravações obtidas, só podendo ser utilizadas nos termos da legislação
processual penal;
→ Nos locais objeto de vigilância
com recurso a câmaras de vídeo é obrigatória a afixação, em local bem visível,
do seguinte:
-- A menção “Para sua proteção,
este local é objeto de videovigilância”;
-- Quem é o responsável pelo
tratamento dos dados recolhidos (perante quem os direitos de acesso e
retificação podem ser exercidos).
→ Deve também existir simbologia
adequada, nos termos definidos por portaria do membro do Governo responsável
pela área da administração interna.
[9] Sublinhado e negrito nossos.
A violação do disposto neste art.º 19.º constitui uma contraordenação
grave, punida com uma coima de 500 a 250.000 euros, cfr. art.º 38.º n.º 1 al.ª u) e n.º 2 al.ª c), da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto.
Convém ainda ter sempre presente que o RGPD, no seu art.º 5.º n.º 1 al.ª c), consagra princípio da “minimização dos dados”, significando que, antes de
instalar um sistema de videovigilância, o responsável pelo tratamento de dados
deve sempre examinar criticamente se esta medida é, em primeiro lugar, adequada
para atingir o objetivo desejado (neste caso, a proteção de pessoas e bens) e, em segundo lugar, adequada e necessária
às respetivas finalidades. [10]
[10] Para além deste princípio, existe também o
princípio da “limitação das finalidades” [art.º 5.º n.º 1 al.ª b) do RGPD],
segundo o qual os dados recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e
legítimas não podem ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com
essas finalidades (v. g., publicação nas redes sociais ou disponibilização a
órgãos de comunicação social em contrapartida de qualquer vantagem económica).
2.1.1 – Os sistemas de videovigilância instalados em veículos são abrangidos pelo
disposto no art.º 19.º, da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto?
Algumas pessoas defendem que não
pelos seguintes motivos:
O RGPD “não se aplica ao tratamento de dados pessoais (…) efetuado por uma
pessoa singular no exercício de atividades exclusivamente pessoais ou
domésticas” [art.º 2.º n.º 2 al.ª c), do RGPD].
Vindo a Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto,
assegurar a execução, na ordem jurídica interna, do RGPD, também ela não é
aplicável ao tratamento de dados pessoais referidos no parágrafo anterior.
Perante esta exclusão, essas
pessoas entendem que os sistemas de videovigilância instalados nos veículos
podem registar todo o conteúdo captável à sua frente, desde que não se proceda
a qualquer utilização das imagens ou, no caso de gravação de vídeos, estas se
destinem exclusivamente ao uso do operador.
Não partilhamos desta opinião.
Passamos a expor as razões.
A propósito destas matérias, o
Comité Europeu para a Protecção de Dados, adoptou, em 29 de Janeiro de 2020, as
Diretrizes 3/2019 sobre
tratamento de dados pessoais através de dispositivos de vídeo.
No que concerne ao “exercício de atividades exclusivamente
pessoais ou domésticas”, é referido, na sua página 8 (secção 2.3 – 12) que,
no contexto da videovigilância, deve ser interpretado de forma restrita.
Assim, “de acordo com o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) [11], a chamada «isenção doméstica» deve «ser
interpretada como tendo unicamente por objeto as atividades que se inserem no
âmbito da vida privada ou familiar dos particulares”.
[11] Acórdão de 6 de Novembro de 2003, Bodil Lindqvist, C-101/01, EU:C:2003:596, n.º 47.
Ainda segundo o TJUE [12],
“um sistema de videovigilância que
envolve o registo e a conservação constantes de dados pessoais e se estende,
«ainda que parcialmente, ao espaço público e, por esse motivo, se dirige para
fora da esfera privada da pessoa que procede ao tratamento de dados por esse
meio, não pode ser considerada uma atividade exclusivamente “pessoal ou
doméstica”, na aceção do artigo 3.º, n.º 2, segundo travessão, da Diretiva
95/46»”. [13] [14]
[12] Acórdão de 11 de Dezembro de 2014, František Ryneš contra Úřad pro ochranu osobních údajů,
C-212/13, EU:C:2014:2428, n.º 33.
[13] Sublinhado nosso.
[14] A Diretiva 95/46/CE foi revogada pelo
Regulamento (UE) 2016/679, actual RGPD.
A propósito das câmaras de vídeo integradas nos automóveis para prestar
assistência de estacionamento, podemos ler também, nas Diretrizes 3/2019, que se elas forem construídas ou adaptadas
de forma a não recolherem quaisquer informações relativas a pessoas singulares
(como matrículas ou informações que permitam identificar transeuntes), o RGPD
não se aplica.
Face ao exposto, pela aplicação do art.º 19.º, da Lei n.º 58/2019, de 8
de Agosto, num sistema de videovigilância, instalado num veículo, e que envolve
o registo e a conservação de imagens [15], as câmaras não podem
incidir sobre “vias públicas, propriedades limítrofes ou outros locais que não sejam
do domínio exclusivo do responsável”, sob pena de uma coima de 500 a 250.000
euros.
[15] Referimo-nos apenas à imagem, pois a captação
de som é, em regra, proibida em qualquer local, cfr. art.º 19.º n.º 4, da Lei
n.º 58/2019, de 8 de Agosto.
2.1.2 – Uma câmara de videovigilância que capte
exclusivamente o interior de um veículo enquadra-se na “isenção doméstica”, não
lhe sendo aplicável o art.º 19.º, da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto? [16]
[16] Devido à transparência dos vidros, para esta
delimitação do campo visual, pode-se usar, v. g., mascaramento por software.
À luz das conclusões constantes nas Diretrizes 3/2019
[página 8, secção 2.3 - 13], os dispositivos de vídeo operados no interior de
um veículo podem enquadrar-se na “isenção doméstica”, dependendo de diversos factores
que devem ser analisados em conjunto.
Assim, além dos elementos supra mencionados (identificados pelos acórdãos
do TJUE), o utilizador da videovigilância dentro de um veículo tem de verificar
se:
→ possui algum tipo de relação pessoal com o titular dos dados;
→ se a vigilância tem algum possível impacto adverso nesses titulares; ou
→ se a escala ou frequência da vigilância sugere algum tipo de atividade
profissional da sua parte. [17]
[17] No caso de veículos destinados ao transporte
individual e remunerado de passageiros (v. g., TVDE), a utilização de um
sistema de videovigilância no seu interior deve obedecer ao disposto no art.º
19.º da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto (vide nota n.º [8]), com
as necessárias adaptações.
2.1.3 – O art.º 19.º, da Lei n.º 58/2019,
de 8 de Agosto, é igualmente aplicável aos veículos dotados, de origem, de
sistemas de videovigilância integrados?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Peguemos no caso dos veículos automóveis da marca Tesla [18],
que vêm equipados de origem com um conjunto de câmaras (internas e externas)
utilizadas em 2 modos de gravação: “dashcam” [19] e “sentinela” [20].
[18] O modelo 3, de 2024, possui sete (7) câmaras
de videovigilância exteriores e uma interior. As câmaras frontais cobrem uma distância aproximada entre
60 a 250 metros; as câmaras laterais cobrem uma distância aproximada entre
60 a 80 metros; e a câmara traseira cobre uma distância aproximada entre
50 a 100 metros.

[19] O modo “dashcam” é activado pelo utilizador e
permite registar as imediações do veículo (ver o alcance na nota anterior)
durante a condução. As imagens de vídeo são gravadas numa pen USB. Nos manuais
de proprietário, podemos ler que, caso o utilizador opte pela gravação manual,
a “dashcam” guarda a gravação dos últimos 10 minutos.
[20] O modo “sentinela” é também activado pelo utilizador e
permite que as câmaras e os sensores (se existentes) do veículo permaneçam
ativados e prontos a registar quaisquer atividades suspeitas (os manuais
de utilizador não nos esclarecem que “actividades suspeitas” são essas…) em redor
do veículo quando está trancado e na posição de estacionamento.
Como é do conhecimento público, a
Tesla, Inc. foi condenada pelos tribunais de alguns Estados-membros da União
Europeia por não ter advertido os adquirentes dos seus veículos de que, mesmo
no modo “sentinela” (considerado menos intrusivo do que o modo “dashcam”), a
utilização daquele sistema poderia configurar violação das normas de proteção
de dados pessoais.
Presentemente, aquela empresa
americana garante que, para efeitos de conformidade com os requisitos de
privacidade da UE, o modo “sentinela” grava apenas até 10 minutos de cada vez e
que as filmagens só são guardadas quando o automóvel ou a câmara detetar um evento
de segurança. [21]
[21] Parece-nos que a Tesla, Inc. pretende invocar o “interesse
legítimo” para a utilização do sistema de videovigilância no veículo, questão
que iremos abordar de seguida.
Não é clarificado o que a Tesla, Inc.
entende por “evento de segurança”. Por exemplo, constitui evento de segurança a
mera aproximação de uma pessoa a menos de um metro do veículo?
Perante as decisões judiciais
desfavoráveis, actualmente, qualquer manual de proprietário de um veículo Tesla
contém, na parte referente às câmaras, quer para o modo “dashcam” quer para o
modo “sentinela”, a seguinte nota:
“É exclusivamente da sua responsabilidade consultar e assegurar a
conformidade com todos os regulamentos locais e restrições de propriedade
locais no que diz respeito à utilização de câmaras”.
Sendo assim, incumbe ao
utilizador das câmaras (normalmente o proprietário) o dever de se assegurar que
todas as normas que temos vindo a referir estão a ser cumpridas, sob pena de
ele próprio vir a ser responsabilizado (não só na esfera contraordenacional,
mas também na esfera penal).
2.1.4 – Existência de “interesse legítimo” para a instalação/utilização de sistema de
videovigilância em veículo.
Sem prejuízo do que foi anteriormente exposto, a instalação de sistemas de videovigilância é lícita quando se revelar necessária à salvaguarda dos “
interesses legítimos” do responsável pelo tratamento ou de terceiros,
salvo quando se sobreponham interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que justifiquem a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança [
art.º 6.º n.º 1 al.ª f), do RGPD].
Quanto aos pressupostos deste “interesse
legítimo”, nas Diretrizes 3/2019 podemos
ler que ele deve ser real e actual [22], não podendo ser
meramente hipotético ou especulativo [23].
[22] Por exemplo,
alguém instala um sistema de videovigilância num veículo, com câmaras a filmar
o espaço envolvente, já que o mesmo fica habitualmente estacionado numa zona
com histórico de crimes (não é necessário que o responsável pelo tratamento de
dados tenha já sofrido danos). Ou o proprietário de um veículo de marca Tesla
que acciona o modo “sentinela” por essa mesma razão.
[23] No exemplo
anterior, já não haverá “interesse legítimo” se este se fundar na mera
possibilidade de ocorrência futura de um crime.
O Comité Europeu para a Proteção
de Dados entende que, à luz do princípio da responsabilidade, é aconselhável
que os responsáveis pelo tratamento de dados documentem os incidentes
relevantes (incluindo data, método e, sempre que possível, informações sobre
eventuais com denúncias criminais), de modo a reforçar a observância do
fundamento do “interesse legítimo”.
Aquele Comité tem entendido
também que a existência de um “interesse legítimo” deve ser reavaliada
periodicamente, de modo a verificar se se mantém real e actual.
2.1.4.1 – E se houver oposição de terceiros?
Mesmo no caso de um sistema de
videovigilância fundado no interesse legítimo, o titular dos dados pessoais
(neste caso, da imagem) tem o direito de se opor, a qualquer momento, ao
tratamento, por motivos relacionados com a sua situação particular, cfr. art.º 21.º n.º 1, do RGPD.
Perante a oposição, a filmagem
deve cessar, a não ser que o responsável pelo tratamento apresente razões
imperiosas e legítimas para esse tratamento prevaleça sobre os interesses,
direitos e liberdades do titular dos dados. [24]
[24] Neste caso, o
prosseguimento da filmagem só é legítimo no quadro de um estado de necessidade,
na sua dimensão probatória (art.º 34.º do CP).
3 – Admissibilidade de gravações obtidas
ilegalmente como prova em processo penal
Imaginemos, agora, que alguém
utiliza um sistema de videovigilância com câmaras orientadas para a via
pública, sem que se verifique qualquer “interesse legítimo”, e que,
fortuitamente, a respetiva gravação capta um elemento relevante, envolvendo a
imagem de terceiros, suscetível de servir como meio de prova em processo penal.
Considerando tudo o que ficou
exposto, podemos concluir que este sistema de videovigilância viola o disposto
no art.º 19.º n.º 2 al.ª a), da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, pelo que as
respetivas gravações devem ser consideradas ilegais.
Mas, ainda assim, poderão ser
usadas como meio de prova num processo penal?
Decorre do art.º 167.º n.º 1, do
Código de Processo Penal (CPP) que a utilização de imagens como meio de prova é
processualmente proibida quando a sua recolha (ou ulterior utilização) constitua
um ilícito penal, nomeadamente o crime de gravações e fotografias ilícitas
previsto no art.º 199.º n.º 2 al.ªs a) e b), do CP.
Importa, desde logo, assinalar
que, sendo as imagens recolhidas na via pública sem que exista um “interesse
legítimo” que, nos termos do RGPD, legitime a instalação ou utilização de um
sistema de videovigilância, não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude
ao abrigo do art.º 31.º n.º 1, do CP (princípio da unidade dos sistema
jurídico).
No que concerne ao crime de
gravações e fotografias ilícitas, deve-se notar que a ilicitude penal de manifesta
em dois planos distintos:
► 1.º [al.ª a)] fotografar ou filmar outra pessoa contra a sua
vontade (expressa ou presumida).
Neste caso, entendemos que não se
verifica o preenchimento do tipo de crime sempre que a recolha da imagem se
mostre justificada pela notoriedade da pessoa fotografada ou filmada, pelo
cargo que exerce, por exigências de polícia ou de justiça, ou quando tal
recolha se integre na captação de lugares públicos ou de factos de interesse
público, ou que hajam decorrido publicamente, situações em que não é exigível o
consentimento, nos termos do art.º 79.º n.º 2, do CC.
► 2.º [al.ª b)] utilizar
ou permitir que se utilizem, contra vontade (expressa ou presumida) fotografias
ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.
Relativamente à utilização da
imagem, o art.º 79.º n.º 2, do CC, apenas estabelece que não é necessário o
consentimento quando ela se encontra justificada pela notoriedade da pessoa
fotografada ou filmada, pelo cargo que desempenha ou por exigências de
polícia ou de justiça. [25]
[25] Como já
referimos anteriormente, a segunda parte do art.º 79.º n.º 2, do CC, refere-se
apenas à recolha de imagem e não à sua utilização.
Mas será que, no caso com que
iniciámos a presente secção, as imagens captadas na via pública (fora do quadro
legal da videovigilância) poderiam ser utilizadas no processo penal, mesmo
contra a vontade da pessoa filmada, “por
exigências (…) de justiça” (art.º 79.º n.º 2, do CC)?
Alguns autores sustentam que as
imagens devem poder ser admitidas no processo penal mesmo sem o consentimento
do visado. Tal entendimento assenta na invocação de uma justa causa,
essencialmente decorrente da ponderação dos valores em conflito, na qual a realização
da justiça prevalece sobre o direito à imagem, sendo por vezes convocado o
regime previsto no art.º 79.º n.º 2, do CC, para fundamentar essa prevalência.
Não concordamos com esta posição
porque esvazia de conteúdo o art.º 167.º n.º 1, do CPP.
Outros autores defendem que o
art.º 167.º n.º 1, do CPP, ao disciplinar especificamente a utilização de
imagens em processo penal, exige uma compreensão restritiva do art.º 79.º, n.º 2, do CC, no que se refere às ‘”exigências de justiça”.
Assim, segundo tal entendimento,
a cláusula das “exigências de justiça” não encontra, em regra, aplicação no
processo penal, porquanto este dispõe de um regime próprio previsto no CPP. [26]
[26] Segundo esta posição, tais imagens não
poderiam ser utilizadas no processo penal, ainda que constituíssem prova
essencial de um crime de homicídio.
Na nossa opinião temos que conciliar
aquelas três normas, ou seja:
→ Em primeiro
lugar, deve verificar-se se está preenchido o tipo de crime do art.º 199.º n.º 2 al.ª b), do CP, isto é, se estão a ser utilizadas fotografias ou filmes contra
a vontade do titular, seja ela expressa ou presumida, mesmo que tenham sido obtidos
de forma lícita. [27]
[27] Um arguido dificilmente daria o seu consentimento para a utilização de fotografia ou filme como prova incriminatória no processo penal.
→ Preenchido este tipo de crime, cumpre averiguar se a ilicitude
do facto não poderá ser excluída pelas “exigências de justiça” do art.º 79.º n.º 2, do CC, cjg. com o art.º 31.º n.º 1 do CP.
Entendemos que estas “exigências
de justiça” assumem um valor normativo e hermenêutico próprio, impondo uma
ponderação casuística de valores em conflito, ou seja, entre a realização da
justiça e o direito à imagem.
Assim, o art.º 79.º n.º 2, do CC,
deve aplicar-se apenas quando o uso da imagem se revelar necessário ou
indispensável à realização da justiça, e quando o direito à proteção da imagem
do interessado prevalecer em menor grau, de modo que a eventual ofensa não se
configure como desproporcional nem atentatória da dignidade da pessoa.
→ Excluída a ilicitude do facto com fundamento numa causa de
justificação legal, as imagens constituem meio de prova admissível no processo
penal, nos termos do art.º 167.º n.º 1, do CPP.
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