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Como ponto de partida para a
presente reflexão, proponho a análise do seguinte exemplo prático e fictício:
O João foi detido em flagrante
delito por dois agentes da Polícia de Segurança Pública, por suspeita da
prática de um crime de furto qualificado. No decurso da detenção, foram-lhe
aplicadas algemas, em conformidade com os pressupostos legais da sua utilização.
Conduzido à esquadra territorial
competente, João permaneceu, sob vigilância, numa zona destinada a detidos,
enquanto os agentes procediam à elaboração do expediente relativo à sua
detenção.
Sucede, porém, que, num momento
de desatenção dos agentes, João logrou, com recurso a um pequeno artefacto
metálico oculto na bainha das calças, manipular o mecanismo de fecho das
algemas, conseguindo abrir um dos lados.
Aproveitando-se da momentânea
ausência de supervisão direta, abandonou apressadamente as instalações
policiais, evadindo-se para parte incerta.
Será que o João comete também o crime
de evasão (de presos), previsto e punido pelo art.º 352.º n.º 1 do Código Penal?
O crime de evasão encontra-se previsto no art.º 352.º do Código Penal (CP), podendo ler-se, no seu
n.º 1, que:
“Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até 2 anos.”
Esta norma encontra-se inserida no capítulo II dedicado aos “crimes contra a autoridade pública” e na secção II intitulada de “tirada e evasão de presos e do não cumprimento de obrigações impostas por sentença criminal”.
Perante a denominação da secção onde se encontra inserida a norma, “evasão de presos”, questionamo-nos se a evasão aí prevista se restringirá ao alcance semântico e pragmático, no contexto jurídico actual, do vocábulo “prisão” ou se abrangerá também a mera detenção.
Como sabemos, detenção e prisão são, no ordenamento jurídico português, e concretamente no direito processual penal, medidas bastante distintas. Com a entrada em vigor do
Decreto-lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (diploma que aprovou o Código de Processo Penal vigente), essa distinção assumiu-se de forma clara, com a introdução do capítulo III, com epígrafe “
da detenção” (
art.ºs 254 e sgts. do CPP).
[1]
[1] Na vigência do
Código de Processo Penal de 1929, a actual “
detenção” era tratada como prisão.
V. g., no seu art.º 250.º, situado no capítulo IV (art.ºs 250.º a 277.º), com epígrafe “
da prisão”, podia ler-se: “
Em flagrante delito a que corresponda pena de prisão, todas as autoridades ou agentes encarregados de manter a ordem pública devem e qualquer pessoa do povo pode prender os infractores". (sublinhado nosso).
→ uma medida de carácter precário e condicionada a determinadas finalidades que hão-de verificar-se em prazos máximos muito curtos (24 ou 48 horas);
→ não resulta necessariamente de decisão judicial; e→ situa-se entre os momentos de captura e do despacho judicial sobre a sua apreciação e validação.
[2] In, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, art.ºs 1.º a 107.º, pág. 478.
Apesar da dissemelhança entre as medidas, com a entrada em vigor do
Decreto-lei n.º 400/82, de 29 de Setembro (diploma que aprovou o Código Penal actual, doravante apenas CP), manteve-se, na epígrafe da secção II (art.ºs 389.º a 395.º), a terminologia “
prisão” – “
da tirada, evasão de presos e não cumprimento de obrigações impostas por sentença criminal” – que vinha do
Código Penal de 1886 (capítulo III, art.ºs 190.º a 196.º).
No
Código Penal de 1886, tal capítulo III tinha como epígrafe: “
da tirada e fugida de presos, e dos que não cumprem as suas condenações”. Apesar da Reforma Penal de 1995 (
Decreto-lei n.º 48/95, de 15 de Março) ter alterado a secção II (agora integrando os art.ºs 349.º a 354.º), o vocábulo “
prisão” manteve-se na sua epígrafe, agora denominada “
da tirada e evasão de presos, e do não cumprimento de obrigações impostas por sentença criminal”.
Não obstante o título da secção II, o
art.º 392.º n.º 1 (na versão originária do CP), no que concerne ao crime de evasão, dispunha:
“Quem, encontrando-se em situação, imposta nos termos da lei, de detenção, internamento, ou prisão, em regime fechado, ou aproveitando a sua remoção ou transferência, se evadir, será punido com prisão até 2 anos.”
“Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até 2 anos.”
Sendo assim, parece-nos que, actualmente, a privação legal da liberdade referida neste art.º 352.º n.º 1 – ainda que situando-se numa secção intitulada “da tirada e evasão de presos…” – não terá um âmbito mais restritivo que a versão originária do preceito legal, abrangendo, assim, a detenção em local fechado (Posto Policial ou Tribunal) e respectivo transporte.
Abarcará, também, hodiernamente, as pessoas submetidas a medida de segurança privativa da liberdade, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação.[3]
[3] No caso de violação da medida de coacção obrigação de permanência na habitação, o seu eventual (não automático) agravamento, nos termos do
art.º 203.º n.º 1 do CPP, não impede que essa mesma violação integre a factualidade típica do crime de evasão, p. e p. pelo art.º 352.º n.º 1 do CP, não havendo violação do princípio
ne bis in idem, que, como se sabe, impede, tão só, que alguém seja condenado, sancionado, mais que uma vez pelos mesmos factos. Assim decidiu o TRP, no seu aresto de 07/12/2016, proc. n.º 746/13.3GDGDM.P1, rel. Ernesto Nascimento, consultado
aqui em 23/07/2022. No mesmo sentido aponta o Acórdão do STJ, de 23-11-2017, proc. n.º 1210/12.3POLSB.L1.S3, rel. Isabel São Marcos, consultado
aqui em 23/07/2022. Em sentido distinto, o Acórdão do TRP, de 16-03-2011, proc. n.º 492/09.2PJPRT.P1, rel. Moreira Ramos, consultado
aqui em 23/07/2022.
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É este o entendimento perfilhado,
e. g., por
Paulo Pinto de Albuquerque [4], que após tecer algumas considerações acerca do bem jurídico protegido (“
a autoridade pública do sistema estadual, quando profere decisões de privação de liberdade”), afirma que “
a tutela não se estende apenas à segurança dos estabelecimentos e reportada a decisões finais mas ainda, a outras que surjam no decurso do processo penal v. g. a detenção ou as medidas de coacção detentivas, que por visarem satisfazer as necessidades que as determinou, não pode o sistema deixar de prover ao seu efectivo acatamento”.
[4] In, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição, Editora Universidade Católica, pág. 1110 e 1114. O autor lança uma crítica à posição assumida por
Cristina Líbano Monteiro,
in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 395, relativamente ao bem jurídico protegido, a saber, “
a segurança da custódia oficial".
No que concerne à detenção, embora ela se inicie com uma ordem/voz (de detenção), para efeito de subsunção no tipo de crime de evasão, essa ordem/voz não basta. É pois necessário que a detenção se materialize, ou seja, que o detido veja efectivamente coarctada a sua liberdade de movimentos (v. g., por intermédio da colocação de algemas). Só neste momento ele passa a estar sob a custódia do poder público. [5]
[5] Assim, o Acórdão do TRP, de 20/11/2013, proc. 195/11.8 GBLMG.P1, rel. Ernesto Nascimento, consultado
aqui em 23/07/2022. O mesmo TRP, em 15/12/2004, estando em causa uma detenção determinada por mandado, decidiu de modo distinto, designadamente: “
Para efeitos do crime de evasão, há detenção quando os agentes da autoridade entregam em mão à pessoa a deter o respectivo mandado ao mesmo tempo que lhe comunicam que está detida.”
Vide, Acórdão de 15/12/2004, proc. 0413860, rel. Élia São Pedro, consultado
aqui em 23/07/2022.
Se, para perpetrar a evasão, for usada violência (incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física) contra o agente detentor, poderá também estar preenchido o tipo legal de crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo
art.º 347.º n.º 1 do CP.
Neste caso, existe concurso efectivo (real) entre ambos os crimes, pois tratam-se de tipos penais distintos, visando-se, num (coacção e resistência sobre funcionário), “a protecção directa da autoridade pública como titular de um conjunto de poderes funcionais a serem exercidos, seja qual for o acto funcional que estiver em apreço no seu exercício”, e, tutelando-se, no outro, apenas a própria evasão. [6]
[6] Acórdão do STJ, de 27/01/1999, proc. n.º 98P929, rel. Virgílio de Oliveira, consultado
aqui em 23/07/2022.
Entendemos também que comete o crime de evasão, aquele que, detido por qualquer pessoa (com efectiva restrição de mobilidade), nos termos do
art.º 255.º n.º 1 al.ª b) e n.º 2 do CPP, consegue fugir antes da entrega imediata a uma autoridade judiciária ou entidade policial.
Já não cometerá o crime de evasão, o suspeito que, após ser detido para identificação – nos termos do
art.º 27.º n.º 3 al. g) da Constituição da República Portuguesa,
cjg. com o
n.º 6 do art.º 250.º do CPP –, alcança a fuga.
Esta é uma detenção distinta (enquanto medida cautelar e de polícia) da que se encontra prevista nos
art.ºs 254.º e sgts. do CPP, assumindo-se como um meio instrumental necessário e adequado à realização do acto legítimo de identificação de um suspeito.
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