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Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um advogado.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Quando a coima não basta: ruído de vizinhança e a aplicação subsidiária do crime de desobediência

    Para introduzir a matéria de forma concreta, apresenta-se um caso prático que permite delimitar a questão jurídica a apreciar, advertindo-se que a análise será meramente superficial, sem pretensão de exame exaustivo. 

No dia 15 de Novembro de 2025, pelas 23H30, cansado da música alta do seu vizinho Pedro (e depois de já o ter advertido várias vezes), o João chamou a polícia. 

A polícia deslocou-se ao local e ordenou ao Pedro que cessasse de imediato a incomodidade. Este desligou a música mas, mal os agentes abandonaram o local, tornou a ligá-la. 

Perante a insistência, os agentes regressaram e advertiram o Pedro de que, caso reincidisse, seria detido pela prática do crime de desobediência. 

Não obstante a advertência, o Pedro voltou a ligar a música, vindo então a ser detido. 

    Neste caso prático, a música incómoda produzida pelo Pedro enquadra-se na definição de “ruído de vizinhança” prevista no art.º 3.º al.ª r) do Decreto-lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, diploma que aprovou o Regulamento Geral do Ruído (doravante apenas RGR). [1] 

[1] Entendido como o “ruído associado ao uso habitacional e às actividades que lhe são inerentes, produzido directamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja susceptível de afectar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança”. 

    Nos termos do art.º 24.º n.º 1 do RGR, “as autoridades policiais podem ordenar ao produtor de ruído de vizinhança, produzido entre as 23 e as 7 horas, a adopção das medidas adequadas para fazer cessar imediatamente a incomodidade”. 

    No nosso caso prático, foi isso que sucedeu. Mas qual é a consequência jurídica da desobediência a tal ordem das autoridades policiais? 

    Neste caso, o não cumprimento da ordem de cessação da incomodidade emitida pela autoridade policial constitui uma contraordenação ambiental punida com uma coima de 400 a 4000 euros, nos termos dos art.º 28.º n.º 1 al.ª h) do RGR, cjg. com o art.º 22.º n.º 2 al.ª a) da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais (Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto). 

    Não tendo o eventual efeito dissuasor da sanção contraordenacional sido suficiente para fazer cessar a incomodidade, poderiam os agentes policiais ter advertido o Pedro de que a persistência na conduta configuraria crime de desobediência, como fizeram? 

    No que concerne ao crime de desobediência, o art.º 348.º do Código Penal (CP) prevê e estatui o seguinte: 

1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: 

a)      Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou 

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. [2]

2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.  

[2] Sublinhado nosso.

    No que concerne à denominada cominação administrativa ou cominação ad hoc [art.º 348.º n.º 1 al.ª b), do CP], a doutrina e a jurisprudência maioritárias têm entendido que a mesma não é admissível quando o legislador tenha previsto, em termos normativos, as consequências da conduta desobediente em causa, nomeadamente no plano contraordenacional, disciplinar ou processual. [3] 

[3] Este entendimento encontra eco nos princípios estruturantes da intervenção penal [em particular, nos princípios da fragmentariedade, da subsidiariedade e da necessidade] que funcionam como critérios orientadores da atividade legislativa na definição do âmbito de incriminação. Por razões de economia de exposição, não me deterei aqui na análise aprofundada desses princípios.   

    CONTUDO, a mesma doutrina e jurisprudência entendem que não está vedada a cominação “ad hoc do crime de desobediência, se a autoridade donde emana a ordem considerar, que a consequência prevista na lei pelo legislador, se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso”. [4] 

[4] Neste sentido, v. g., o Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 2/2013

    No caso concreto, verificou-se que a medida contraordenacional se mostrou insuficiente para assegurar a tutela efetiva dos bens jurídicos protegidos [5], justificando-se, assim, a aplicação do crime de desobediência como mecanismo subsidiário e de ultima ratio

[5] Neste caso: o descanso, a tranquilidade e o sono, direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, que se inserem no direito à integridade física; ambiente e qualidade de vida; e a própria autoridade pública.

    Em suma, a conduta do Pedro preenche, em concurso real, o tipo contraordenacional do art.º 28.º n.º 1 al.ª h), do RGR, e o tipo de crime do art.º 348.º  n.º 1 al. b), do CP, eventualmente qualificado pelo n.º 2 cjg. com o art.º 12.º n.º 2 da Lei n.º 53/2007, de 31 de Agosto (no caso da PSP), ou pelo art.º 14.º n.º 2 da Lei n.º 63/2007, de 06 de Novembro (no caso da PSP). [6] 

[6] Nos termos do art.º 38.º n.º 1 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, o processamento da contraordenação cabe à autoridade competente para o processo criminal. 

    Este concurso não viola o princípio do ne bis in idem [previsto no art.º 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP) [7]] pois a cominação ad hoc do crime de desobediência não pune o mesmo facto contraordenacional, mas a conduta reiterada demonstrativa da ineficácia da sanção anterior. 

[7] O art.º 29.º n.º 5 da CRP, estabelece que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Este princípio deve ter aplicação, por analogia, em hipóteses de concurso de crimes e contraordenações, quando os bens jurídicos tutelados pelas respetivas normas sejam idênticos.


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1 comentário:

  1. Antes demais quero começar por parabenizar o autor deste blogue.

    Relativamente a este texto, concordo plenamente. Do outro lado está o direito ao descanso que é básico e devia ser respeitado sem ser preciso chegar a estes extremos.

    A verdade é que muita gente não leva as contra-ordenações a sério, porque sabe que na prática, muitas vezes não têm grande efeito. Quando as pessoas insistem em desrespeitar os outros, mesmo depois de vários avisos, acaba por ser inevitável que a polícia tenha de avançar para medidas mais fortes.

    Cumprimentos.

    João Santos

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