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Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um advogado.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

«Pai que batia e chamava de "porca" à filha de quatro anos vence recurso e é ilibado»

Fonte: Google Imagens
   
    Nos últimos dias, vários meios de comunicação social divulgaram que um pai que batia na filha de quatro anos e lhe chamava de "porca" venceu o recurso no Tribunal da Relação de Évora. O homem de 36 anos – que tinha sido condenado a dois anos de pena suspensa pelo Tribunal de Sesimbra e a pagar 1250 euros de indemnização à vítima – foi (…) ilibado, por os juízes desembargadores terem entendido que os comportamentos do pai estavam abrangidos pelo "poder/dever de correção".

    Estes são alguns dos factos dados como provados em primeira instância:

O arguido sempre teve um comportamento agressivo e austero com a sua filha menor, sendo que, quando esta comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe porca;

Se, por qualquer motivo, a menor entrasse em casa e não trocasse os sapatos da rua pelos de casa, o arguido começava aos gritos com ela e dizia-lhe “vais levar nas trombas, porca”;

No dia 17 de Junho de 2021, em virtude de a menor ter saído para a rua, pois tinha visto a avó no exterior, o arguido desferiu uma estalada na cara da menor.

    O Tribunal da Relação de Évora, doravante apenas TRE (vide acórdão de 20 de Fevereiro de 2024, proc. n.º 471/21.1GBSSB.E2, rel. Maria Clara Figueiredo), decidiu, inter alia, que a sentença do Tribunal Judicial de Sesimbra, no que concerne à prova dos factos:

sustentou-se quase exclusivamente no depoimento da ofendida, ao qual foi atribuída total credibilidade, não o confrontado com as restantes provas produzidas em sentido contrário, mormente com as declarações do arguido;

nada consignou, na motivação do juízo probatório, relativamente à apreciação crítica das declarações do arguido, não afirmando sequer que decidiu não lhes atribuir credibilidade e, menos ainda, por que razão o fez;

não foi feita qualquer referência ao depoimento de uma testemunha (educadora da menor).

    Segundo o TRE, o tribunal recorrido usou “em excesso o seu subjetivismo na apreciação de meios de prova de carácter pessoal" (concretamente os depoimentos das testemunhas e as declarações do arguido).

    A sentença não continha “as referências mínimas relativamente à valoração que foi feita das provas produzidas”, e não permitia a reconstituição “do percurso lógico seguido pelo julgador subjacente à decisão que em concreto incidiu sobre cada um dos factos relevantes tidos por provados”.

    Sendo assim, “não tendo sido valoradas e apreciadas criticamente as provas” apresentadas pelo arguido, persistindo a dúvida sobre os factos (dados como provados em 1.ª instância) e dando aplicação ao princípio do in dubio pro reo, tornou-se imprescindível considerar "tais factos como não provados", o que determinou, naturalmente:

a absolvição do arguido da prática do crime de violência doméstica sobre a sua filha, e, por inerência;

a revogação da sentença recorrida na parte em que o condenou no pagamento de uma indemnização àquela (cfr. art.º 82.º-A do CPP).

    Mas o TRE não se ficou por aí, acrescentando, ainda, que, mesmo que tivessem resultado provados os factos que decidiu conduzir aos factos não provados, o crime de violência doméstica não se encontraria preenchido, já que, e em suma:

o propósito que o arguido visou alcançar com tais condutas foi pedagógico e situou-se ainda dentro do dever de correção [independentemente dos juízos valorativos que se possam fazer acerca da adequação da linguagem utilizada ou dos métodos educacionais postos em prática];

no que diz respeito à bofetada, a atitude do arguido parece ter sido impulsiva e revestido caráter pedagógico, já que a criança colocou-se em perigo quando saiu de casa e correu para a estrada para ir ter com a avó.

o mesmo parece ter sucedido nas expressões supostamente utilizadas pelo arguido, tendo o próprio assumido que chamou “porca” à criança “em alguma ocasiões, ocorridas durante as refeições, nas quais a menor atirava comida ao ar, com o propósito de lhe transmitir regras de higiene e de educação”.

    Sendo assim, as condutas imputadas ao arguido, na sentença, preenchem as condições indicadas pela maioria da doutrina, para que se considere estar em presença da concretização dos poderes/deveres parentais a que se reportam os art.ºs 1878.º e 1885.º do Código Civil, porquanto:

"quer as expressões dirigidas à menor, quer a bofetada – contextualizada nos termos sobreditos e que não terá deixado quaisquer sequelas físicas (designadamente vermelhidão) ou psicológicas – passam os crivos da moderação e da proporcionalidade".

    Segundo o TRE, tais condutas, abrangidas pelo poder/dever de correção, não estariam a coberto da causa de justificação prevista no art.º 31.º n.ºs 1 e 2 al.ª b) do CP – como vem sendo entendido pela jurisprudência que julgamos maioritária [1] – pois nem chegariam a preencher o tipo de qualquer norma penal.



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1 comentário:

  1. Confesso que desconheço o acórdão, mas a ser como diz apraz-me dizer o seguinte:

    Como é consabido, o artigo 31.º, n.º 1, do Código Penal estabelece que o facto não é punível quando a sua ilicitude se encontre excluída pela ordem jurídica globalmente considerada. O n.º 2 do mesmo preceito enumera as causas legais de justificação, podendo, contudo, ser admitidas outras de natureza supralegal, como sucede com o chamado direito de correção dos educandos. Até este ponto, nada há a censurar no entendimento perfilhado pela Veneranda Relação de Évora.

    Com efeito, como ensina Pinto de Albuquerque, “os pais e tutores têm, excecionalmente, um direito de correção dos educandos, ao abrigo dos seus deveres gerais de educação e cuidado. Trata-se de uma verdadeira causa de justificação supralegal com o seguinte fundamento: cometendo o educando um ato que implicaria a sua responsabilidade criminal se ele fosse imputável, é dever do educador cuidar por que o castigo transmita a censura ético-social associada ao comportamento do educando, de modo a que ele o não repita no futuro.” (ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5.ª ed., 2022, p. 256).

    Todavia, como o próprio autor acentua, esse direito de correção não pode, em caso algum, traduzir-se em violência física, verbal ou psicológica, sob pena de se converter em abuso e violação da integridade moral e física da criança ou jovem.

    Destarte, pelos fundamentos expostos, que integralmente subscrevemos, não podemos acompanhar o entendimento plasmado no aresto sob análise. Ainda que o direito de correção assente numa causa justificativa supralegal, ele não legitima comportamentos que extravasem os limites da proporcionalidade, necessidade e respeito pela dignidade humana do educando. Qualquer ato violento, seja físico, verbal ou psicológico, afasta-se da finalidade educativa e perde, por conseguinte, a sua natureza justificativa.

    João Paulo Monteiro Cerqueira Alvão.

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